No
momento final do julgamento do mensalão, há anos atrás, escrevi em meu Blog que
não concordava com a decisão. Não por não ver culpa e traição nos atores da
história, em especial os petistas, mas por perceber o quanto a ardilosa elite
brasileira se lambusaria no banquete de hipocrisia que alimentaria a dinâmica
política a partir dali.
E
mais: o papel pedagógico do filme editado pela grande mídia – “A esquerda chega
ao poder, mas acaba na cadeia”.
Mas
e o papel de Joaquim Barbosa, homem negro tão festejado pelos movimentos ao
assumir o posto que hoje ocupa? A confusão conceitual e a complexidade dos
papéis sociais desses atores me fez silenciar. Professor Jaime Amparo, agudo como de costume, nos provoca a
refletir. Vale muito a pena ler!
Franz
Fanon já chamava a atenção há mais de meio século para um regime de dominação
racial em que a aceitação dos negros é condicionada à sua rendição aos (e
reprodução dos) valores brancos.
Qual
o lugar da categoria “raça” no julgamento da ação penal 470? O que a cor da
principal figura do julgamento tem a nos dizer? Ainda que a imaginação racista
branca tenha alimentado contra Joaquim Barbosa os estereótipos tradicionais de
“destemperado”, “sem-equilíbrio”, “sem-civilidade”, ele têm gozado de uma
aceitação que desafia as análises sobre o racismo e talvez por isso explique
certo silêncio da intelectualidade negra frente ao papel do primeiro ministro
negro do Supremo Tribunal Federal como algoz do maior partido de esquerda do
país.
Entro
em campo minado consciente dos custos políticos de tal empreitada mas imagino
que recusar o debate é perder a chance refletir como a supremacia branca se
reproduz no Brasil contemporâneo. Mais que isso, o triste papel de Joaquim
Barbosa nos convida a refletir sobre os limites das atuais políticas de
identidade.
Que
o leitor/a não me interprete mal: ao contrário dos que acreditam que as lutas
baseadas em categorias como “raça” e “etnicidade” reproduzem o racismo, sustento
que tais categorias são não apenas importantes e legítimas como também as
únicas possibilidades para afirmar a existência negra em um mundo estruturado a
partir da dominação racial.
Minha
crítica aos limites da política de identidade negra é na verdade em direção
oposta. A questão não é negar a raça, mas sim reafirmá-la sobre outras bases
que não a da agenda da inclusão per si. É que ela não tem sido forte o
suficiente, como gostaríamos, para construir uma consciência negra
anti-sistêmica, radical, revolucionária. Tampouco quero invisibilizar uma
tradição radical negra herdada da luta de Palmares que se mantém viva nas
periferias brasileiras. Chamo a atenção, no entanto, para uma identidade negra
em formação (nos espaços abertos pelas ações afirmativas) que possui uma
inconfortável afinidade com a sedutiva narrativa de redenção que a imagem
pública de Joaquim Barbosa projeta.
Franz
Fanon já chamava a atenção há mais de meio século para um regime de dominação
racial em que a aceitação dos negros é condicionada à sua rendição aos (e
reprodução dos) valores brancos. E daí? Podemos argumentar que não cabe aos
negros transformar o mundo destruído pelos brancos. De fato, uma das perversas
equações do racismo é responsabilizar suas vítimas. O caso de Barbosa é ilustrativo,
no entanto, das artimanhas do racismo e dos limites e possibilidades da
identidade negra coletiva. A imaginação racista à esquerda diria que
Joaquim Barbosa é um negro que se embranqueceu. A imaginação racista à direita,
mais sofisticada, tem produzido a imagem pública de um juíz pós-raça (neutro,
justo…enfim, a encarnação da Lei).
Joaquim
Barbosa seria aceito porque, ao contrário de muitos de nós, ele não é
revanchista com a sociedade branca e defende os valores republicanos. Sua
escolha estratégica do dia 15 de Novembro para prender os ícones da esquerda
brasileira oferece pistas interessantes sobre a dualidade da República
(historicamente concebida como projeto plural e ao mesmo tempo um projeto
civilizatório anti-negro). Estaria Joaquim Barbosa assumindo o papel de herói
negro que refundaria a República?
Paradoxalmente,
o que as práticas inquisitoriais/autocráticas de Barbosa sugerem é a rendição
negra ao papel de subalternidade na República. Sua presença na mais alta corte
do país nos convida a refletir sobre a nossa recusa fatalista em pensar a
negritude como prática radical que pode transformar a sociedade, para além dos
números de inclusão nos espaços de poder e prestígio. Uma utopia revolucionária
negra acredita que porque negras e negros entendem como ninguém o que significa
a República, a raiva e a experiência acumulada de opressão serão o combustível
para uma negritude explosiva, radical, para além dos discursos de redenção
social tão celebrados atualmente. Em outras palavras, uma pergunta (in)oportuna
em tempos de guerra contra as ações afirmativas seria: qual o projeto de
sociedade brasileira que nós negras e negros propomos? Que comunidade política
pode a categoria raça produzir, para além dos encontros racializados a que
estão submetidos os negros e negras?
“Joaquim
Barbosa não é apenas o nosso Clarence Thomas (o ultra-conservador juiz negro
estadunidense) revestido com o manto perigoso do Direito. Ele é também a
metáfora do nosso impasse político e a projeção sombria do que vem por aí em
termos de participação negra em um modelo de sociedade que é a nossa negação e
a negação do futuro.”
Estas
perguntas oferecem a oportunidade de refletir sobre um último ponto: a estranha
aproximação entre a suposta esquerda “autêntica” (com figuras do movimento
negro) e os partidos de direita na orgia moral contra o Partido dos
Trabalhadores. Ao invés de aproveitarmos a oportunidade para discutir os
limites e possibilidades de uma agenda radical negra para além da representação
simbólica em espaços de poder, temos nos distraído com uma agenda do cinismo
moral que não nos pertence. Que o PSDB e seus aliados encontrem no STF a última
chance de impor um projeto de governo derrotado três vezes consecutivas nas
urnas, é tão entendível quanto desprezível. Incômodo e cruel é o triste destino
de uma certa militância negra que se recusando a pensar o projeto revolucionário
muito mais à (ou para além da) esquerda, sucumbe ao moralismo dirigido da
direita.
Como
fazer uma crítica à cegueira racial da esquerda sem reproduzirmos os discursos
convenientes de que esquerda e direita são iguais? Como não relativizar o papel
trágico do PT na domesticação da esquerda e ao mesmo tempo reconhecer nossa
responsabilidade com o projeto de país que queremos?
A
indicação de Joaquim Barbosa pelo presidente Lula, depois de inúmeras reuniões
de bastidores com lideranças negras, foi comemorada como um gesto
simbólico de afirmação de uma agenda até então inédita no país: ProUni, cotas
raciais, Seppir, Bolsa Família… todas resultado da luta histórica dos
movimentos negros acomodados à esquerda do espectro político. O verdugo do PT é
também resultado irônico e trágico desta luta. Joaquim Barbosa não é apenas o
nosso Clarence Thomas (o ultra-conservador juiz negro estadunidense) revestido
com o manto perigoso do Direito. Ele é também a metáfora do nosso impasse
político e a projeção sombria do que vem por aí em termos de participação negra
em um modelo de sociedade que é a nossa negação e a negação do futuro.
*Jaime
Amparo Alves, jornalista, militante da UNEafro-Brasil e doutor em
Antropologia Social, Universidade do Texas, Austin. Atualmente é Professor
Visitante da Universidad Icesi, da Colômbia, disciplina Geografias de la
Violencia.