domingo, 9 de março de 2014

Graças ao Brasil, a Guiné-Bissau teve telefone

Telefone marca Ericson utilizado na Guiné-Bissau

Poucos sabem, mas foi graças ao Brasil que a Guiné-Bissau teve os primeiros telefones. Falo da Guiné-Bissau Estado novo e independente de Portugal. No final do ano passado, tive a oportunidade de cruzar nos corredores da Editora Thesaurus, com Eng. João Celso, um dos engenheiros que esteve na Guiné nos anos 70, para montar a nossa rede pública de comunicação. Gostou de saber que eu era guineense, e contou-me a aventura que foi, a viagem para Bissau, enquanto jovem engenheiro, na altura. Foram os primeiros anos da independência. Como muitos sabem, o Brasil foi um dos primeiros países a reconhecer a nossa independência e foi também um dos primeiros a inaugurar uma Chancelaria Diplomática no nosso país. Fica aqui o email e o relato sobre essa cooperação na área das telecomunicações. 

Prezado Helmer
Conforme prometido, encaminho esse excerto de nosso livro "Memórias de nossas vidas na Embratel" a sair em brevemente pela Thesaurus. Espero que lhe traga informações interessantes de uma fase histórica e heroica de seu país.
Eis um relato que Edson Soffiatti, gentilmente, escreveu em 4 de junho de 2013 sobre essas atividades, ao que acrescentou ter sido uma experiência interessante pelo aprendizado que ela proporcionou, mas, por outro lado, foi frustrante, pois afinal não foi implementada a ajuda prometida à Guiné-Bissau, consequência da tradicional falta de coordenação de nosso governo.

Iª Parte
O Brasil vivia, no início dos anos 70, sob um regime de governo comandado pela área militar e apoiava irrestritamente o regime salazarista então vigente em Portugal. Por sua vez, Portugal mantinha sua anacrônica política colonialista e sustentava uma desgastante guerra contra os movimentos de libertação das colônias do ultramar. Nos fóruns internacionais. era por isso severamente reprovado, sendo que o Brasil costumava ser um dos  únicos países a rejeitar o reconhecimento dos Movimentos de Libertação das colônias, todos eles de viés esquerdistas,  em apoio  a  Portugal. 

Porém, em abril de 74, ocorreu a surpreendente Revolução dos Cravos, quando caiu o regime salazarista, sendo substituído por um governo de extrema esquerda. O novo governo português então criado tinha como uma de suas metas justamente  negociar a independência das colônias e reconhecer os movimentos de libertação (Frelimo em Moçambique,   PAIGC em Guiné-Bissau e Cabo Verde e o MPLA em Angola) como legítimos governos dos novos países a serem formados.

O Brasil ficou assim numa situação desconfortável  e não teve alternativa senão apoiar as negociações que estavam em curso, lideradas por Portugal, visando a reconhecer os novos governos que se formavam  (processo esse que se desenvolveu em ritmo acelerado, sendo a Guiné-Bissau/Cabo Verde o primeiro território a ter sua independência formalizada), pois seria ridículo o Brasil,  o maior país de língua portuguesa, ficar fora desse processo, o qual contou com formidável apoio de toda a comunidade internacional.  Nesse  apressado movimento de reorientação de sua política externa, o governo brasileiro  se dispôs a instalar, em caráter de urgência, a embaixada na  Guiné-Bissau e Cabo Verde (que na época foram constituídos como um país único e formaram um só país   posteriormente se separariam em dois).

Este preâmbulo é só para ilustrar o momento em que a Embratel se viu envolvida. Naquele movimento acelerado de instalação da embaixada na Guiné-Bissau foi designado como embaixador o diplomata do Itamaraty  Joayrton Cahu, uma pessoa extraordinária, culta e muito objetiva, que sabia a dureza da missão. Acontece que a Guiné-Bissau era um país muito pobre, praticamente miserável (e, além disso, devastado pela guerra), e não tinha absolutamente nada. Em particular, não tinha recursos de telecomunicações para permitir o mínimo funcionamento da embaixada. Foi ai que veio um pedido do Itamaraty, através do Minicom. para que a Embratel fornecesse apoio para implantação de recursos de telecomunicações para o país, e que serviria logicamente à nossa embaixada. Foi quando fui designado pela diretoria como responsável pela missão, que contou também com o apoio do engenheiro Carlos de Marca Pedras, da Área de Engenharia da Embratel.

Viajamos em fevereiro de 1975 juntos com o embaixador e a equipe do Itamaraty de apoio para instalação da embaixada  e passamos uma semana em Guiné-Bissau. Uma cena impressionante foi a quantidade de delegações estrangeiras presentes (Rússia, Polônia, Hungria, Cuba, França, Itália, Portugal, delegação da Al Fatah, um verdadeiro e inesquecível festival de estrangeiros naquele cenário extremamente pobre, todos oferecendo ajuda). Na cidade faltavam até palitos de fósforos, mas tinha vários navios estrangeiros (lembro de um carregamento de açúcar recém-chegado de navio diretamente de Cuba).

O chefe do governo de Guiné-Bissau era Luís Cabral, irmão do Amílcar Cabral, célebre poeta e líder guerrilheiro que morrera em combate na guerra de libertação. Nosso trabalho foi identificar o precário sistema de telecomunicações então existente para uso do embaixada (praticamente equipamentos de HF de uso militar) e efetuar um levantamento das condições para permitir realizar um projeto de instalação de uma rede mínima de telecomunicações para o país. Na verdade, elaborar um plano diretor de emergência, com foco nas comunicações internacionais.  Efetuamos isso juntamente com as autoridades e técnicos locais (tudo muito confuso e incipiente, pela fase de transição em que se encontrava todo o país), demarcamos áreas para equipamentos, terreno para antenas, áreas  para infraestrutura de energia, levantamentos das plantas das edificações existentes,  etc.

Ficamos hospedados num hotel/alojamento que era usado pelas forças armadas portuguesas, com uma modestíssima infraestrutura e parcos serviços, mas procuravam nos atender com muito esforço, especialmente considerando que estavam atendendo ao próprio embaixador e sua comitiva.  Foi uma experiência interessante conviver na intimidade com os diplomatas preocupados em se organizar num ambiente tão precário. Lembro-me de que para passarem mensagens para Brasília, como não havia obviamente nenhum recurso eletrônico de criptografia, o pessoal do Itamaraty se fechava junto com o embaixador no seu apartamento e ficavam horas trancados, cifrando as mensagens pelo método totalmente manual, que era obtido através de livros enormes contendo os códigos. Esses eram os únicos momentos em que eu e o eng. Pedras ficávamos afastados da comitiva e podíamos relaxar um pouco.

Continua...