Um líder no começo
Por:
Mino Carta*
E
vem à tona, de súbito, um fato de 35 anos atrás. Uma entrevista de Luiz Inácio
da Silva, mais popular como Lula, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de
São Bernardo do Campo e Diadema, então com 32 anos. Ali está a essência do
pensamento de um operário que se tornaria presidente da República. A lucidez, a
clareza, a coerência, a energia.
Lucidez.
“Sou dedo-duro para a oposição, comunista para o governo, subversivo para os
patrões”
Volto
ao presente. Telefona Cynara Menezes, valente jornalista da sucursal de
Brasília. Acaba de inaugurar uma nova seção no seu blog, destinada a divulgar
antigas entrevistas. Pergunta se conservo uma de minha autoria, aquela de Lula
publicada pela IstoÉ de 1º de fevereiro de 1978. Não, não
conservo. Diga-se que nada guardo da minha vida profissional, artigos, colunas,
coleções de revistas e jornais que dirigi. Nem sei se tenho em casa algum
exemplar dos meus livros.
Entra
em cena outro valente, Dilico Covizzi, foi meu companheiro de trabalho em
diversas ocasiões, a começar por Veja, na qualidade de peça
fundamental do Departamento de Documentação da Editora Abril. Seguiu-me noJornal
da República e na IstoÉ. Pesquisador emérito, sabe à
perfeição como e por que um arquivo não há de ser necrotério de documentos e
informações. Hoje a exercer a profissão na qual se formou, Direito, ainda me
atende quando preciso, e cabe a ele a tarefa de capturar aquela entrevista,
capaz de levar um presidente da Fiesp, Mario Amato, a dizer: “Só falta agora o
Mino namorar Lula”.
A
bem da precisão, contei naquele dia em
São Bernardo com a preciosa escolta de Bernardo Lerer, enésimo valente, e desta
surtida falo no meu livro de iminente publicação pela Editora Record, O
Brasil, desabusado na mistura de memória com ficção. Por isso, a entrevista
tem dupla autoria, restou-me escrever a reportagem que a precede, um perfil da
personagem, estampada na capa de IstoÉ. Dizia a chamada: “Lula e os
Trabalhadores do Brasil”. Foi a primeira capa dedicada a quem, 24 anos depois,
alcançaria a Presidência de todos os brasileiros, sem exclusão dos metalúrgicos
de São Bernardo e Diadema.
O
mergulho nas páginas de 35 anos atrás me fez bem, tenho todas as razões para me
orgulhar daquela edição, daquela reportagem e daquela entrevista. Limito-me a
reproduzir trechos desta. Bernardo e eu perguntamos: “Mas onde você está
ideologicamente?” O entrevistado responde: “Digo de peito aberto que não tenho
compromisso com ninguém e que o Sindicato de São Bernardo e Diadema é uma da
poucas coisas independentes que existem nesta terra. Só tenho compromisso com
os trabalhadores que me elegeram. No mais a gente é chamado de dedo-duro pela
oposição, de comunista pelo governo e de subversivo pelos patrões”.
Insistimos.
“E a ideologia, Lula, a ideologia?” E lá veio a resposta: “Para fazer um
partido dos trabalhadores é preciso reunir os trabalhadores, discutir com os
trabalhadores, fazer um programa que atenda às necessidades dos trabalhadores.
Aí pode nascer um partido de baixo para cima”. Estávamos diante de um líder de
visões agudas. Afirmava: “Existe, na categoria dos metalúrgicos, um pessoal
preparado, que lê jornal e sabe das coisas. Mas a maioria não tem tempo de dar
a bênção para os filhos”. E mais: “Eu tenho muito cuidado para movimentar esta
classe trabalhadora ainda inconsciente, porque o retrocesso pode ser ainda
maior”.
Nem
por isso, tirava
o time de campo. “Não devemos abandonar a reivindicação, se não conseguirmos o
que queremos, vamos voltar à carga em 1979, e não se não conseguirmos em 1979…
Não estou preocupado se o ano é eleitoral, os donos do poder é que em um
momento como este estão preocupados. Por isso, acho que é hora de negociar, num
nível bem alto (…) Quando eu digo negociar, é porque não existe poder de
barganha. (…) No entanto, vejam como são as coisas, o movimento sindical está
preocupado com o AI-5. A mim, o que incomoda é um artigo da Consolidação das
Leis do Trabalho que não permite a dirigentes sindicais discordarem da política
econômica, quem discorda pode ser cassado”.
“Proponho-me
– declarava Lula –, não incentivar aos trabalhadores a fazerem greves, mas a
prepará-los a entenderem o valor da greve.” Ele já compreendia a diferença
entre consumidor e cidadão, e este é aquele que tem, exatamente, a consciência
dos seus direitos e dos seus deveres. Pois é, a consciência da cidadania,
atributo tão raro até hoje, 35 anos depois, em todos os níveis.
Enfim,
o pensamento do futuro presidente, situação inimaginável então. “Em defesa do
capital nacional, eu me aliaria a eles como brasileiro (referia-se aos
empresários ‘de visão menos poluída’) como se estivesse cumprindo um dever
para com meu país. Claro que pretenderia levar as minhas vantagens nesta
aliança, mas acima de tudo estaria o interesse nacional.”
*
Mino Carta: é diretor de redação de
CartaCapital. Fundou as revistas Quatro Rodas, Veja e CartaCapital. Foi diretor
de Redação das revistas Senhor e IstoÉ. Criou a Edição de Esportes do jornal O
Estado de S. Paulo, criou e dirigiu o Jornal da Tarde.