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Iª parte de alguns trechos e linhas fortes do discurso proferido pelo Doutor Comandante Pedro Pires, na cerimónia de atribuição do grau Honoris Causa.
Sinto-me muito honrado pela alta distinção académica com que a Universidade Lusófona bem quis agraciar-me. É-me grato agradecer e manifestar o meu elevado reconhecimento ao Magnifico Reitor e…, por tamanha honra. […]
Vejo na atribuição do grau Doutor Honoris Causa em Ciências Politicas, que me é conferido, hoje, pela Universidade Lusófona, a valorização de um percurso e de um compromisso ao serviço de uma causa justa e nobre: a busca da liberdade, da dignidade e o progresso. Representa, ainda, na minha opinião, uma interpelação indirecta às razões que despertaram, alimentaram e permitiram a realização desse mesmo percurso político e justificaram o compromisso de uma vida. Mas, afinal, o que terá singularizado esta minha caminhada de modo a que merecesse o vosso apreço e reconhecimento académico?
Rebuscando as marcas que teriam distinguido a minha condição e as minhas opções, enquanto actor político, devo assinalar-vos, antes de mais, que venho do universo as lutas de libertação nacional, movimento político e cultural emergente dos escombros e das transformações políticas, sociais, culturais e ideológicas decorrentes do desenlace da grande tragédia humana, vulgarmente conhecida por II Grande Guerra Mundial. […]
Cumpriu-se, assim a profecia: das trevas nasce a luz. […]
Para alcançar esses objectivos, fundou-se a ONU, regida pela respectiva Carta, e aprovou-se a Declaração Universal os Direitos o Homem, catálogo moderno dos direitos fundamentais a pessoa humana. Na verdade, havia uma ordem mundial que esgotara quanto à sua actualidade, legitimidade e capacidade de dar resposta adequadas às necessidades e exigências da modernidade; […]
Os movimentos de libertação foram resultantes (produtos) de mudanças profundas ocorridas nas relações internacionais e corporizaram novos actores políticos e culturais, oriunos das colónias, e interventores na ordem mundial em mudança. […]
A libertação consiste na recuperação pelo colonizado da sua dimensão humana (humanidade), na medida em que ele foi despojado dessa condição no decurso da colonização e da negação da sua identidade e cultura. […]
Na visão de Amílcar Cabral, um dos maiores líderes das lutas da libertação africana, e como tal universalmente reconhecido, a libertação começa pela descoberta pelo próprio colonizado da sua condição aviltante de colonizado e oprimido e na interiorização por ele da necessidade urgente de superar e de, simultaneamente, se transfigurar em sujeito activo, detentor dos direitos fundamentais do homem, que o reclama e se bate pela fruição plena. Consiste, ainda, num acto de humanização e de auto-reconstrução individual e colectiva os colonizados.
Numa perspectiva operante, entende Amílcar Cabral que a libertação deve ser, essencialmente, obra do próprio colonizado, de decurso da qual se transfigura e se afirma enquanto sujeito histórico. Enquanto agente da sua própria libertação, o colonizado, transformado em combatente da liberdade, não deve esperar por dádivas: deve agir. Está-se perante um chamamento à regeneração e à responsabilização. Na mesma óptica, Cabral apela ao combatente da liberdade para que procure “pensar pela sua cabeça e marchar pelos seus pés” a fim de ganhar a autonomia de acção e pensamento. […]
A libertação na perspectiva de Leopold Sédar Senghor, poeta emérito, pensador e homem de Estado senegalês, fundador em companhia de Aimé Césaire e Léon Damas da teoria da Negritude, passa, primeiramente, pela afirmação, pelo reconhecimento da universalidade da cultura africana e pela igualdade entre culturas e civilizações, logo, requer a negação da visão política colonial que se assenta na proclamação da inferioridade das culturas africanas. […] Atingir-se-ia uma igualdade humana plena pela via da superação de preconceitos culturais, da libertação e do enriquecimento mútuo das inteligências de uns e de outros. Senghor tinha razão: as culturas são realidades sincréticas. […]
Na perspectiva de Frantz Fanon, antilhano, psiquiatra de ofício, pensador e combatente pela causa da libertação da Argélia, o caminho de acesso à libertação é forçado a passar pelo leito da violência libertadora, a única forma deixada ao colonizado para vencer a alienação e a opressão, a que foi submetido, e desfazer-se da penosa carga despersonalizante que transporta consigo. Na sua visão, o colonialismo, com as suas regras, leis e práticas discriminatórias, gerou no colonizado, então classificado como indígena, a despersonalização, o menosprezo pela sua própria pessoa, o medo, a insegurança e falta de confiança nas suas capacidades da sua comunidade nacional. […] Fanon justifica, assim, a legitimidade e a necessidade do uso da violência libertadora no contexto do processo de reconquista da liberdade e a independência nacional usurpada ao povo argelino.
As visões dos três líderes e teóricos das lutas de libertação dos povos africanos, que escolhi como referências para a reflexão, não se contrariam no fundamental, isto é, no significado e no alcance do que pensam que deva ser libertação. Vejo-as complementares. Como é evidente, comungo da visão e das propostas de Amílcar Cabral, de quem fui companheiro e discípulo. Finalmente, estimo que a verdadeira libertação deve poder permitir, aos povos dominados e oprimidos, a mudança de destino e a conquista o futuro. […]
Ao passar em revista a luta de libertação em que participei e de que fui também um os dirigentes, entendo-a como um desafio diário e permanente para os seus actores e, particularmente, para a sua liderança. Com efeito, se está obrigado a fazer apelação, sistemática e constante, aos recursos íntimos e morais, à autoconfiança, à imaginação e à capacidade para liderar homens em condições de precariedade, de incertezas e de carências de meios materiais. […]
Os objectivos da independência nacional não serão atingidos sem se dispor, como orientação, de uma ideologia libertadora, progressista e fecundadora do futuro. Nessa perspectiva, torna-se necessário inventar ou recriar princípios, valores e símbolos que corporizem as marcas específicas das utopias (Nação e Estado) que se pretende materializar. Nessa perspectiva, é essencial idear a Pátria e aprofundar a consciência de Nação. Logo, se impõe inspirar e incutir nos espíritos a consciência o dever imperativo de compromisso e de lealdade para com a Pátria (o patriotismo); atribuir relevância ao lugar e à indispensabilidade da solidariedade, da unidade nacional e do espírito de pertença; e assimilar a necessidade e significação da primazia do interesse nacional sobre os interesses particulares. […]
A libertação deve ser percebida como um processo por concluir, que requer atenção para a sua consolidação gradual e o seu aperfeiçoamento progressivo.
No caso de Cabo Verde, em que participei enquanto dirigente e líder político em diversas fases do seu processo político, vou abordar os aspectos que entendo mais interessantes e úteis para o seu conhecimento. Não se trata, como é óbvio, de uma análise científica e neutra. É uma visão, possivelmente parcial, vinda de um actor político comprometido com a trajectória feita, o que não significa contudo que eu não procure ser objectivo. Porém, entendo que, nesta matéria, o critério mais acertado da verdade é a pratica, são os resultados.
To be continue