Fernando Teixeira
“A pobreza não é um pecado, é a verdade. (…). Mas a
miséria (…) essa é pecado. Na pobreza ainda se conserva a nobreza dos
sentimentos inatos; na miséria não há nem nunca houve nada que os conserve. (…)
Na miséria sou eu o primeiro que estou disposto a ofender-me a mim próprio.”
F.
DOSTOIEVSKI in “Crime e Castigo”
I
Ser democráticos é o que
“esta a dar”. Querem nos fazer desesperadamente democráticos. Queremos
desesperadamente ser democráticos. Ser uns Atenienses de Africa em vez de
Espartanos para o qual parecemos ter mais jeito. Mas ser democrático é difícil,
a começar pela falta de meios. Ou como como se diz entre nós, “não há condições
financeiras…”.
Sim, a democracia pressupõe
alguma riqueza, mesmo que apenas para comprar tinta indelével para pintar dedo
dos infelizes analfabetos que votam com o polegar. Há, esquecia-me das urnas de
papelão e boletins de voto… os instrumentos da democracia por excelência.
Pobres de nós; queremos ser democratas, mas somos pobres de mais para isso. Mas
quando o “Estado que quer democratizar-se” não tem “condições financeiras” arranja-se
uma maneira.
A solução é nos comprarem a
democracia. Bem, se calhar a frase não é boa: pagarem-nos a
democracia. Soa melhor; pagarem a democracia… Não, decididamente não. Seria
melhor: “financiarem-nos a democracia”. Não… também não; é necessário algo mais
sério e um pouco mais pomposo: A Comunidade Internacional vai financiar
a Democracia na Guiné Bissau. Agora está bem. Não; outra vez não; é
politicamente incorrecto. A formulação correcta politica e desavergonhadamente
(para nós) é a seguinte:
A Comunidade Internacional
vai financiar o processo eleitoral na Guiné-Bissau”.
a) E esse financiamento
inclui observadores (para dizer que foram ”livres e justas”), urnas, tinta e
boletins de voto e recenseamento.
b) A Guiné entra com a
população (“contrapartida nacional” - como se diz nos “projectos de
desenvolvimento” - afinal temos que entrar com alguma coisa).
A paz compra-se, Roma
dixit. A democracia não? (Grecia dixit?).
Ser democrata é como ser um
homem digno, pressupõem alguma abastança além de e algum self-respect a
mistura. Um miserável raramente consegue ser digno; pois “se a pobreza não é
vergonha” a miséria sim; pois a miséria avilta… e daí um miserável raramente
poder ser um democrata.
E nem é apenas porque
“primeiro é preciso comer e só depois filosofar” que o Marx já pregava; prefiro
dizer apenas que ele “tem mais no que pensar”. A miséria e a democracia são
como azeite e agua, são conceitos mutuamente exclusivos. Sim, um miserável raramente
consegue ser um democrata pois isso é contra a sua natureza.
Como é contranatura até
fazer de um miserável, um perfeito democrata, como se diz. Ou não é necessário
ser “um perfeito” democrata mas apenas um “assim-assim?”.
E por isso a democracia (direito de voto) na antiguidade
era apenas para homens livres, pessoas abastadas e ou cultas. Tinha-se que
provar que possuía bens suficientes para se “ser democrático”. Mesmo na América
que só tem duzentos e trinta e sete anos de Independência houve alturas, em
alguns Estados, que o direito de voto era exercido só por quem “tinha meios”
para isso.
Por isso e outras que, um
miserável raramente consegue ser democrático, mas também porque o seu
acabrunhante e miserabilisestado de alma não lhe atrai para aí...
Para se por a exercer direitos cívicos… era o que faltava.
II
O nosso povo infelizmente é
miserável. Pois é mais do que pobre; nos índices de Desenvolvimento Humano está
sempre entre os últimos do Planeta para a nossa vergonha. Há muitos povos pobres
no mundo e em Africa em particular.
Em África também há os povos
remediados e alguns poucos - como dizer? - organizados; mas também existem os
povos miseráveis de que nós, orgulhosamente, fazemos parte (e não apenas por
solidariedade revolucionária do antigamente); embora dentre esses sejamos
sempre os últimos de todas as listas de desenvolvimento (afinal o que interessa
é participar e não ganhar. Sem esquecer que no campeonato dos miseráveis, estar
em ultimo lugar ou no primeiro é relativo. Talvez o mais miserável deva ser o
Nº 1 da lista; ou devia ser o contrario?).
Fazer parte desses países
miseráveis dói muito; dói, dói, afinal poderíamos ser mais organizados, se não
mais desenvolvidos, do que Mali, Burkina, Senegal, Gambia e a República da Guine…
- e quero lá saber dos que não acreditam - mas os que nos governaram e governam
durante todos estes anos não deixaram. Cachorros. Mas também por nossa culpa.
Seja como for, esquecendo dos cachorros, não deixamos de ser um país miserável
(país, povo, cidades, vilas, bairros, cães, porcos e vacas). Mas o que é a
miséria diante da democracia? Que importância tem a pobreza se somos
democráticos?
A pobreza é porventura mais importante que a democracia? Do que
ser democrático? Claro que não; prefiro ser pobre mas democrático, do que rico
mas… enfim nunca sabemos o que preferimos e o que nos fazem preferir. E quando
se é pobre… aceita-se tudo. E quando miserável come-se de tudo. Come e cala
como diz o proverbio.
Então como de um povo
miserável não podemos fazer um povo rico, fazemos o mais fácil, fazemo-lo
democrático. Dois males é que não podem ser; é demais. Um povo miserável sim,
mas democrático - que obedece todos os preceitos de uma sociedade livre e
democrática -, admirável!!! Há milagres sim, mas não é preciso pedir tanto a
Deus, basta ganhar o totoloto (ou euromilhões?),
para a acreditar na Sua omnipotência.
III
Há quem pense que a História
não passou e “não passa” pelos nossos povos. Há quem diga mesmo que não têm
História pois não há vestígios de grandes monumentos arquitectónicos que provam
a “passagem” da História. Então é necessário “fazer-lhes” (financiar-lhes) a
História. Assim “tiram-nos” directamente da Idade da Pedra, da Idade Media,
para a modernidade; para um sistema político igualzinho ao de Inglaterra. Num
passe de mágica, numa capsula do tempo, pilotados por valorosos cosmonautas da
democracia que vindos directamente do século XXI. Sim do seculo XXI, pois a
Africa Negra não vive no seculo XXI, apenas adaptaram o calendário Juliano
através dos seus colonizadores.
Os Maias tinham o seu calendário, os antigos
Egípcios também. Os Judeus, Chineses e os Russos o seu. Os Árabes têm o seu
(ainda estão no ano 1434), cada povo conforme o seu desenvolvimento histórico,
social e cultural. Nós estamos em pleno século XXI vivendo como há 1000 anos
atras. Um paradoxo onde o tempo histórico e económico não coincidem. Mas o
tempo político e social também não. É uma chatice…
É nesta inversão de tudo - e
não apenas de valores - que as “democracias” africanas, estão inquinadas à
partida, nunca servirão para muito. Se acreditarmos em René Dumont que em 1962
- sem conhecer, portanto, todas as desgraças dos últimos quarenta anos, todos
os males que viriam se abater sobre a Africa – já nos dizia que a “L`Afrique
est mal partie”, por isso não vai a lado nenhum (com todo o escândalo e
incompreensão que provocou com a sua obra nessa altura), hoje posso dizer com
toda a tranquilidade que “A democracia Africana começou mal” ou em língua de
ricos “La democratie Africaine est mal partie”.
Mas esta constatação advém
da simplicidade de compreender que podemos ter os “instrumentos democráticos”
feitos de “partidos políticos”, “eleições periódicas”, “assembleias nacionais
eleitas” (cheinhas de analfabetos, tribalistas, fundamentalistas, etc.),
“Governos” (que apenas desgovernam) etc., e copiar tudo que se faz nos países
democráticos, mas ela pode não ter nenhum resultado positivo; nem para o povo
que em última instância é o “beneficiário” (nos “projectos de desenvolvimento”
temos sempre os grupos alvos, os beneficiários indirectos, os finais, etc., e
outras balelas), nem para as elites e partidos políticos (grupos alvos) nem
para os promotores (os financiadores e as ONGs estrangeiras).
Aclarando o raciocínio sobre
isto uso um exemplo de alguém, sobre outro assunto, que se aplica a este
também. É mais ou menos o seguinte: podemos reunir um conjunto de pessoas que
nunca foram a uma igreja católica, e sem serem católicos sequer, num edifício
qualquer, ensinar-lhes a cantar hinos religiosos; pôr-lhes nas mãos um missal
onde acompanharão o serviço religioso católico, vestir um deles de trajes de
sacerdote, e ensinar-lhes como representar uma missa durante quarenta e cinco
minutos. Eles até podem ser muçulmanos, budistas ou agnósticos, mas bem
ensinados, podem realizar essa cerimónia na perfeição. Como num filme com
actores profissionais.
E se nesse momento, um
católico inocente, ao ouvir os hinos, entrasse nessa Igreja e assiste-se a essa
encenação, a essa missa fingida, iria acreditar que os presentes eram todos
católicos, e que estava realmente numa igreja católica, com um padre verdadeiro;
pois tudo que ele conhecia da sua religião estava presente: a liturgia, os
cânticos, as bênçãos e oferendas. Mas no fundo é uma impostura, pois é uma
representação...
São assim as democracias
africanas, uma representação, uma impostura imposta, feita de liturgias
europeias, mas que nunca terão o resultado delas. Portanto nunca servirão para
serem mais do que encenação. Tem que se entender de uma vez para sempre que a
Democracia não é um fim em si. A Democracia é apenas um instrumento para levar
ao poder os melhores para que estes governem melhor e criem riquezas para o
povo. A democracia é para por os competentes a frente dos incompetentes. A
democracia é para melhorar a vida do povo. Este é que é o objectivo final, o
“fim em si”.
IV
Se vou a uma tabanca ou
vila qualquer e ofereço ao chefe da mesma zinco para cobrir casa dele,
bicicleta para passear, arroz (ou um produto alimentar similar, dependendo do
país Africano), e lhe peço para dizer aos seus “súbditos” para votarem em mim,
sabendo de antemão que essas pessoas não têm capacidade de analisar o meu programa politico
(por culpa dos sucessivos governos corruptos e incompetentes que tiveram no
passado) e nem de recusar as ordens do chefe da tabanca, onde esta
a liberdade e justeza de tais eleições?
Se vou a um bairro onde
vivem muçulmanos e peço-lhes para votarem em mim porque sou também muçulmano,
sabendo de antemão que vão aceitar (aconselhados ou não por seus chefes
religiosos), onde está a Democracia?
E se sou de uma determinada
tribo? E peço aos dessa tribo que votem em mim? E geralmente sabemos que é o
que sucede em toda a parte desta Africa imensa, onde está a Democracia?
Os europeus e americanos não
percebem isto? Não percebem que aplicar em África receitas e uma forma de
democracia similar à aquela que é aplicada ao povo inglês, é um contra-senso,
para não dizer um disparate?
Os americanos e europeus, na
sua relativa cegueira, pensam que estão espalhando a democracia -
como a conhecem - pelo mundo; e para eles, a prova desse sucesso
extraordinário, de transformar povos que sempre viveram em atrasadas realidade
tribais, em repentinos democratas, amantes da bondade da democracia e das suas
infinitas possibilidades para trazer o progresso as suas vidas, são as “eleições”
atrás de “eleições” que exigem, promovem, financiam e por fim
“observam” (um eufemismo para fiscalizar); e como acreditam piamente nessa
ilusão - que aliás apressam a definir sempre como “livres e justas”, em
qualquer país de África em que se realizem -, depois não percebem os
acontecimentos que depois contrariam esse seu diagnóstico.
Mas tudo tem a sua
utilidade, pois servem para lavar as mãos das consequências futuras, como as de Costa
do Marfim, do Darfur ou no genocídio do Rwanda.
Assim as consciências ocidentais estão sempre tranquilas. Afinal implantaram a
democracia, o instrumento supremo para o desenvolvimento, harmonia e boa
governação, o resto deixa de ser de responsabilidade comum, num mundo cada vez
mais comum.
V
Um homem Um voto. Há coisa
mais bela que isto? Mais Ateniense que isto? Péricles (que foi o maior de todas
os estadistas de todos os tempos) devia ressuscitar para ser observador da
O.C.D.C. em todas as eleições ao Sul do Saara, e pelo caminho realizar uns
seminários - tão em moda hoje em Africa desde que os Ocidentais entenderam que
o caminho para o desenvolvimento passa por eles. Os Guineenses, esses cépticos,
agora perguntam “se é pago ou não” e agem em conformidade; se não é, mandam
“passear” o seminário. Sabem, por experiencia própria, que na sua maioria só
servem, realmente, para justificar o salário de quem o dá e de quem o promove -
para ensinar aos nosso felizes eleitos analfabetos, como fazer uma democracia
ideal, em que houvesse equilíbrio entre os interesses do Estado e dos cidadãos.
Ensinar aos eleitos
analfabetos como se desenvolve uma economia, como se faz a gestão normal da
coisa pública e como se come a mesa quando vão a encontros internacionais e
balelas do género. Talvez num dos módulos do seminário nos dissesse que as
eleições por si só não garantem a democracia. E muitas vezes só servem para
levar ao poder analfabetos, fundamentalistas, tribalistas de toda a ordem que
não estão de modo nenhum interessados na criação de um Estado democrático, mas
sim de teocracias, tribocracias e ditaduras mascaradas com eleições periódicas.
Um homem Um voto: os
analfabetos geralmente votam em analfabetos. Um analfabeto raramente se
identifica com um licenciado, identifica-se com um igual a ele. Membro de uma
tribo raramente vota no de outra tribo…
“Um homem Um voto” deveria
ser precedido de “Um Homem um Cidadão”, “Um homem um Alfabetizado”, “Um homem
uma Dignidade”, “Um Homem uma Habitação”, “um Homem um Hospital”, “um Homem um
Dever”, “um Homem um Direito”… e por ai fora, até a “Um Homem não um
Miserável”. Mas ensina-se o rosário ao vigário?
VI
Onde estão essas eleições
“livres e justas” nos países árabes agora? Ali havia sempre eleições livres e
justas que os presidentes ganhavam com 90% dos votos sufragados… afinal era
tudo mentira? Afinal anos e anos de democracia eram apenas para o “Inglês ver”?
Qual Inglês… Francês, Americano, Espanhol… e fiquem vendo enquanto o mundo está
a mudar nos nossos e vossos olhos, consequências de uma mistificação
planetária: As eleições em dezenas de países do dito terceiro mundo, nunca
foram justas, nem livres. Ouso mesmo dizer que “jamais” foram nem livres nem
justas.
“Que trama emaranhada nós
tecemos, quando a nossa actividade principal é mentir” (Sir Walter Scott dixit).
Acredito que em breve possivelmente toda África Negra acompanhará este
terramoto que agora atravessa os países árabes; do que dela resultará
finalmente, ninguém saberá, mas espero que o tribalismo - como movimento
político, como reaccionarismo social, como a ultima barreira entre o povo
africano e a liberdade, modernidade e progresso - seja varrido da face da
terra. E que descanse em paz, finalmente no seu lugar, o caixote de lixo da
História.
As últimas eleições que
assisti na Guiné tiveram uma abstenção de quase 50%, isso diz alguma coisa a
alguém? Cansaço do povo? Farto de um sistema que nunca lhe trouxe nada de bom,
nem um bocadinho de paz numa vida inteira de atribulações, fome, guerra, suor e
sangue, sangue e suor numa existência miserável que não merece, não pediu, não
quer mas da qual nunca pode sair por culpa desses políticos que são eleitos
apenas para o massacrar e roubar?
Já agora a votação devia ser
paga. Cada votante devia receber algo em troca do seu voto em qualquer eleição;
pois como nos seminários, só assim ganhará algo real com essa eleição… e quanto
ao “ganho real” não estou brincando…estou aqui sentado com uma cara muito
séria.
Algo não esta bem no
sistema. Algo vai mal no Reino da Dinamarca. O Rei vai nu… Por isso escrevo
hoje cada vez mais, pois da literatura também se faz a cultura de um povo, a
história de um povo, a mudança e o sentimento de pertença de um povo. E desta
forma dar povo um profundo credo em si mesmo, uma sensação de participação
politica superior, mais profunda, do que uma simples ida as urnas.
No fundo trata-se de dar um
objectivo claro e perceptível ao povo. Só com este sentimento é possível fazer
o impossível, realizar o impossível através do povo, de forma que não espere
realizações vindas de cima, mas as que partem de baixo, que surgem dentro de si
próprio. Pois Governo algum, em tempo nenhum, por mais competente que seja,
jamais poderá realizar a “parte” do povo na construção nacional. Pois o poder
estabelecido não é o Presidente ou o Primeiro-ministro, é o que eles
representam, e o que lhes deixa ou não governar, o Povo.
Por: Fernando Teixeira
Bissau, Centro Cultural, 25
de Abril do ano do desastre de 2013