Fernando Teixeira
CABA “I OÇA BARDADI NINKU PAGO I MORTO”
Povo não é
burro. Esta frase crioula usada na musica do artista Zé “Manel” Fortes
intitulada “pubiska burro” do álbum “Marom di mar”, tem muitas conotações (que de resto a
letra da música faz jus) que não apenas a simples constatação pragmática ou
apenas empírica de que “o povo não é burro”.
A sua
tradução literal para o português faz-nos cair num erro, pois na verdade a
frase quando dita transpõe sempre mais do que o seu significado literal:
significa que o “povo é vigilante e sabe tudo o que se passa…” portanto não é
burro: porque sabe de tudo (embora não diga nada). Não é burro: porque mesmo
sabendo, finge que não sabe, e ao nada dizer é - além de não ser burro
-matreiro. Não é burro: porque resguarda-se (pois sabe que se disser “o que
sabe” sofre consequências…) Não é burro: porque “guarda” cuidadosamente “aquilo
que sabe” para no futuro usar contra os prevaricadores…
Na mitologia popular o próprio povo, na sua
singularidade - feita de indivíduos concretos - cria uma entidade abstracta, distante,
quase mítica, a que ele (como individuo) pertence numa comunhão abstracta de
seresque nunca consegue discernir, que chama de Povo. É esse povo que é o
depositário final de todas as suas esperanças, ansiedades, raivas e impotência.
O individuo/povo sente que é esse povo que um dia será o seu vingador … e mesmo
que saiba que nunca chegara esse dia, a esperança no advento desse dia, o ajuda
a viver cada dia do seu difícil presente.
Como
individuo fica fortalecido e consegue suportar melhor as vicissitudes da vida
pois sente que ele é parte desse povo a que esta ligado por fios invisíveis mas
inquebráveis; por isso, no dia da vingança, ele estará impreterivelmente ao
lado dos vencedores, ou então não há justiça na Terra…..
Portanto “Povo
i cá burro” significa então e também que um dia a justiça será reposta e a
verdade triunfará e o povo será vingado. Um dia… povo i cá burro. povoka burro… bureçaka`sta
na povo! Ele é apenas paciente… é apenas esperto… apenas matreiro…
A verdade
triunfará. A verdade, a verdadeira, aquele que não é minha ou tua, mas que é
aquela pela qual tanto ansiamos.
II
Isto é a propósito de precisamos fazer uma pausa
no nosso dia-a-dia inteiramente político que nos consome todas as nossas
energias na indignação constante que se transformou o nosso viver. Uma pausa na
política imbecil que temos e aproveitar para falar das criações espirituais do
povo; naquelas em que ele junta a sabedoria secular com o bom senso proveniente
do seu viver também popular numa sentença ou adágio que feitos de valores
morais têm o condão de nos ensinarem a maneira certa de percorrer o caminho que
deve ser trilhado.
Isto a
propósito do provérbio ou ditado Guineense que mais me assarapanta por dizer
basicamente que os “Guineenses temem enfrentar a verdade embora estejam sempre
prontos para enfrentar a morte”. O tal batido, repetido, afirmado, conclamado “Guineense oça morte ma i medi bardadi.”
E este ditado nasceu quando? Depois do início
da Luta de Libertação Nacional? No fim dela? Com a cisão que se dá no PAIGC
depois do 14 de Novembro? Ou já existia, adormecido, nas lucubrações e
divagações do povo, desde a era colonial? Estranha sentença que de premissas
aparentemente correctas, extrai uma conclusão errónea, para não dizer
excêntrica. Pois se pararmos um instante para analisar este ditado, somos
obrigados a perguntar: de que Guineenses se fala neste ditado? Qualquer um de
nós? Ou de “alguns” Guineenses que por alguma razão, durante a sua vida,
tiveram que enfrentar a morte em troca de dizer ou não “a verdade”?
Faço estas
perguntas porque sei que os ditados não surgem do nada, e seres humanos
“normais” geralmente têm medo da morte, mas a “verdade” e suas implicações
morais e filosóficas, suportam bem… assim sem receber respostas às minhas
interrogações, acabei entendo que este ditado nada tem a ver connosco, então
que povo ou com a nossa idiossincrasia como seres humanos particulares.
Mas vamos apenas por uns instantes tentar
compreender pelo menos de onde surge a conclusão que aparentemente não deriva
das suas premissas inicias. Senão vejamos a partir de seguinte exercício: se o
ditado rezasse: “Guineenses oçabardadininku
pago i morte” (Os Guineenses, pela verdade, estão sempre dispostos a
morrer), acho que seria mais correcto (e mais em consonância com a tal cultura
e a idiossincrasia do homem Guineense que falei antes).
Por isso, por ser uma pessoa normal (e portanto
temeroso da morte), mesmo correndo o risco de ser enfadonho, peço a vossa
licença para separar as premissas da conclusão e - como num jogo de cartas
baralha-las - começar de novo:
1º Premissa: “Guineenses oça morte” (guineenses não temem a morte)
2º Premissa: “Guineenses medibardadi” (Guineenses temem a verdade)
Aceitando estas premissas como verdadeiras,
vamos num exercício silogístico (que despreza a questão de premissa principal e
secundaria) analisar:
1º “medibardadi
/ oça morte” (medo da verdade/desprezo pela morte)
2º “medibardadi
/ medi morte” (temor a verdade/temor a morte)
3º “oçabardadi
/ medi morte” (desprezo pela verdade/temor a morte)
4º “oça
morte / oçabardadi” (coragem perante a morte / respeito pela verdade)
Sistematizando:
A)Medo da verdade-B) desprezo pela morte-C)
temor a verdade-D) temor a morte-E) desprezo pela verdade-F) temor a morte-G)
coragem perante a morte-H) respeito pela verdade.
Encontramos
quatro proposições aparentemente contraditórias e mutuamente exclusivas:
A e D (“Medo
da verdade”) e (“desprezo pela verdade”).
B e D :
(“desprezo pela morte”) e (“temor a morte”)
E, ato
seguintes duas concordantes:
C e H (“temor a verdade”) e (“respeito pela
verdade”).
E uma que se firma
por si só: G (“coragem perante a morte”)
Justapor as
orações misturando tudo no caldeirão da nossa “mentalidade geral” de Guineense,
chegamos a seguinte oração conclusão:
“Os
guineenses não temem a verdade da mesma maneira que não temem a morte”.Assim
seria então, em bom português este nosso provérbio.
E com toda a
justiça, em bom crioulo seria:
“GUINEENSES
OÇAMORTU MA É KA MEDI BARDADI”
Ou como disse
inicialmente:
GUINEENSES OÇABARDADININKU PAGO I MORTE
Na verdade
estas duas orações é que definem a verdadeira alma Guineense e não o vulgo e
espalhado “Guineenseoça morto ma
émedibardi”; por isso por mais que se pense que este último é que define a
verdadeira essência do ser humano Guineense recuso aceita-lo. E isto não é uma
afirmação gratuita ou ufana. Isto é uma constatação pessoal, que desde a
infância me foi dado observar, tanto em gente humilde do como em gente com
formação. Durante toda a vida vi gente que preferia morrer, do que aceitar
porem em causa as suas palavras, do que duvidarem da “sua verdade”.
III
Por isso começaremos por falar da verdade no
seu conceito primeiro de ser apenas “algo contrário da mentira”. Mas será
verdade que “uma mentira repetida mil vezes torna-se uma verdade”? Ou só nas
doentias e criminosas cabeças de Hitler e Goebbels no seu afã de enganar, manipular
e destruir? Acreditar em mentiras não tem, a meu ver, rigorosamente nada com
repetições, acreditamos basicamente por três razões: quando somos tolos, quando
desconhecemos as premissas ou quando é cómodo para nós. Uma “meia verdade” é
pior que uma “mentira”? E uma “meia mentira”? É também pior que uma mentira?
Temos um adagio que diz “Bardadi i cá
malketa” que ouvimos dizer desde criança, mas na verdade, no nosso processus político a “verdade” como tal
não existe; cada um de nós tem a sua particular verdade, aquela em que acredita
e está em consonância com a sua particular mentalidade; pois, infelizmente, se
a nossa “mentalidade em geral” é fruto do meio e da nossa educação, a nossa
“mentalidade política” é quase sempre fruto de uma vivência feita das nossas
perdas e ganhos em vidas humanas, em parcos bens materiais e imensos bens
emocionais; tudo o que professamos é baseado em concepções que sustentamos,
arreigamos e defendemos - mesmo sabendo no fundo de nós mesmos que são
profundamente erradas – porque cremos que procedendo assim estamos do lado
“certo”: do lado das "nossas raízes", do lado dos “nossos”, dos “da
nossa cor da pele”, dos “da nossa tribo”, dos “do nosso partido”, dos “dos
nossos amigos”, dos “dos nossos colegas de trabalho”, do lado “dos profissionais
iguais a nós”, do lado “dos da nossa corporação”…
Afinal os
mais “civilizados” que nós não fazem o mesmo? Os ingleses não dizem que “certo
ou errado é a minha pátria”? Pátria única, comum, de acordo. Neste momento cada
Guineense tem a sua Pátria pessoal e a pátria comum está cada vez mais longe
dos seus corações.
Pois na base do anteriormente dito, se sou
político a minha pátria é o meu partido por mais asneiras que faça ou fez (“só
temos razão dentro do partido e com o partido”, alguém ainda lembra-se disto?).
Se sou militar a minha pátria é o quartel, contra tudo e todos se for preciso.
Se sou professor a minha pátria é a defesa da corporação. Se sou deputado a
minha pátria é a Assembleia e seus privilégios. Se sou governante a minha
pátria é o meu gabinete. Se sou engenheiro... Mas se sou povo onde é a minha
pátria?
IV
Temos um ditado que reza assim: “borgonha ma morte”. Este para mim faz
todo o sentido, conhecendo a alma Guineense. Este não tem tradução pois no dia
em que a “vergonha for maior do que a morte” em outra língua que não o crioulo,
a morte será algo pequeno demais para interessar.
Por isso não vou traduzir literalmente, vou
traduzir como pode ser entendida “A honra é maior do que a morte”. E não teria
a ver com “alguns” Guineenses apenas, para passar a ser possivelmente uma
verdade secular, que neste pedaço de chão, sempre acompanhou o nosso viver e
morrer há mais de quatrocentos anos. O viver e morrer de todos os Guineenses;
pois as pessoas normais geralmente têm medo da morte; e para pessoas normais a
honra é e será sempre um imperativo ético (geralmente, também).
Disse antes “que durante toda a vida vi gente
que preferia morrer, do que aceitar porem em causa as suas palavras, do que
duvidarem da sua verdade”. Pois bem vou-vos contar quatro pequenas histórias
que não me contaram, mas que asiste e vi com estes velhos olhos que a terra
há-de comer:
Com quatro ou
cinco anos, num bonito domingo de sol, na antiga rua Viera Machado, vi um
senhor, com uma certa formação, novo, garboso, levantar da mesa onde almoçava
ao ar livre com família e amigos, pegar uma faca e cortar a própria garganta,
como a uma galinha, a frente de irmãos e familiares, por contradizerem “a sua
verdade”. E com a garganta cortada, descontrolado, correu até a Lamine Injai
para ir cair nos pântanos... fez isso porque jurou que o faria… e com a honra
não se brinca… nesta nossa peculiar mentalidade.
Com oito
anos, em Farim, vi meu pai a “saltar” o balcão da loja da Ultramarina, de que
era encarregado, para brigar com um retalhista - armado com um punhal, que fez
questão de mostrar ao meu pai (para ver se ele assim se acalmaria; pois na
verdade este homem não queria brigar, apenas fazer negócio) - rodeado de
dezenas de outros retalhistas, clientes da casa, porque um deles recusando a
“sua verdade”, lhe chamou de kalabante,
pondo a sua autoridade e a sua moral em causa. Ele compreendia e falava um
pouco do dialecto fula e mandinga, e percebeu o insulto, ao mesmo tempo que entendeu
que se não defendesse a sua honra, não mais esses homens o iriam respeitar (e
um comerciante que não é respeitado, não é comerciante, como depois me
explicou). Mas no momento da contenda sabia também que não tinha hipóteses
contra tantos, mas mesmo assim, naquela característica idiossincrática,
tipicamente Guineense, “preferia morrer”, do que permitir que a “sua verdade”
fosse posta em causa.
Um dos guardas do estabelecimento, mandinga,
de alcunha “Cumprido” (que Deus o tenha) é que o salvou nesse dia, metendo-se
em frente dos contendores, e demonstrando que o meu pai tinha razão, pois a
falta de respeito veio da parte deles. A sua autoridade foi decisiva para
acalmar os ânimos, pois o outro senhor, como meu pai, também já estava
“decidido a tudo” numa determinada altura.
Mas esse
incidente fez-me recordar de outro quando tinha quatro anos de vida, vivíamos
então na pequena vila de Mansaba, onde meu pai teve de deslocar-se com a
família (na falta de um emprego em Bissau, para ser encarregado de uma loja não
sei se da NOSOCO, Gouveia, Ultramarina ou Barbosa C.ta). Ele tinha um amigo,
também hoje falecido chamado Aguinaldo Paquete (que era pai de uma menina e um
rapaz, um pouco mais velho que meu irmão mais velho) também ele encarregado de
uma loja que ficava de outro lado da estrada principal, a frente quase da
nossa. Um belo dia a P.I.D.E. (policia secreta portuguesa) apareceu e prendeu
umas pessoas, entre eles, o Sr. Paquete e o levaram para Bissau. E como a
esposa teve que ir para Bissau, os filhos deles ficaram na nossa casa. Aquilo
abalou imensamente o meu pai; pois sabia que o amigo não era nenhum malfeitor
E além disso tinha a plena consciência que por
serem amigos, nesse meio tão pequeno, ele também poderia ser preso a qualquer
momento. Então disse que a ele não prenderiam. Morreria, mas não seria preso.
Não admitiria nunca que o prendessem. E a minha mãe, que o conhecia bem
disse-me, anos mais tarde, que ele estava a serio e teve muito medo nessa
altura, pois sabia que se viessem prende-lo, ele ia morrer (matando alguém se
preciso for), mas ele não aceitaria nunca ser preso a frente da esposa e dos
filhos (éramos ainda apenas dois filhos, eu de quatro e meu irmão de seis). E
eu, pequeno que era, nunca entendia essa “casmurrice” nacional. Esse “não ter
medo da morte” em nome da verdade. Porque é que a verdade tinha que ser mais
importante do que a morte?
Mas só vim a
entender esse espírito suicida dos Guineenses, anos mais tarde, quando já na
quarta classe do ensino primário, em Bissau, vi o meu velho, contra todo o bom
senso que lhe conhecia, ir bater a porta de um oficial da marinha portuguesa,
de apelido Salgueiro, para lhe exigir um pedido de desculpas por ter chamado de
preto, a mim, uma criança de dez anos incompletos. Naquele tempo, em plena
guerra, um africano ir afrontar um militar (ainda mais oficial), português, na
sua casa, era uma coisa impensável; independentemente da razão ou não que a
pessoa poderia eventualmente possuir seria, no mínimo, cadeia na certa.
Acontece que eu e o filho desse oficial da
marinha portuguesa éramos amigos e colegas de escola. E este dava explicações
ao filho quando chagava do emprego ao fim da tarde. Mas como nos, os colegas,
estávamos sempre na rua em frente a jogar a bola, o miúdo não parava quieto na
sala. Então o homem teve a maldita ideia de acabar com a minha diversão. Falou
com o meu pai e convenceu-o a obrigar-me a ir as “explicações” que dava ao
filho. Como não ia cobrar nada por isso, meu pai achou a ideia excelente. E
acto seguinte chamou-me a comunicou que os dias de jogo a tarde tinham chegado
ao fim. E todos os dias tinha que ir ter com o Zé Carlos, para juntos assistir
as “explicações” do pai dele.
O miúdo não era muito desenvolto na gramática
(em contrapartida era barra em ciências naturais e grande conhecedor de
astronomia, os planetas, a via láctea, as constelações não tinham segredos para
ele… aprendi com ele a encontrar no céu a Ursa maior em minutos…) e eu por
alguma razão, que ainda hoje desconheço, parecia que tinha nascido apenas para
declamar os verbos nas suas estranhas formas, tempos e modos, conhecendo até a
exaustão o condicional, pretérito perfeito, os gerúndios e outras balelas.
Embora sem nenhum interesse por ai além nisso, esforçava-me apenas com o único
fito de poder sair mais cedo para ir jogar; pois que apresentasse o caderno com
o TPA (trabalho para casa) resolvido, com os verbos conjugados certeiramente,
teoricamente, tinha o direito de sair uns trinta minutos mais cedo. E eu
precisava desse precioso tempo, pois de outra forma os outros rapazes que
jogavam a bola na rua (como Edmundo Gama, PápaNhati, Tino e o irmão também Pápa,
oriundos de Bubaque, e mais alguns da zona da Meteorologia que apareciam)
teriam debandado para as suas casa jantar.
O Sr. Salgueiro, era um indivíduo com sólida
formação para aquele tempo; pois tinha terminado o Liceu, em Portugal, o que
era raríssimo, e naquele tempo era quase como ter uma licenciatura (e ter
licenciatura naquele tempo era como ser duas vezes doutorado hoje); queria
orgulhar-se do filho, fazer dele um bom aluno, se não o melhor da nossa turma
da escola. Por isso ficava muito triste e abatido quando todos seus esforços
não surtiam resultados. E ainda mais triste ficava, quando eu respondia a todas
as perguntas e o filho não acertava numa. Ainda oiço a sua voz desanimada,
depois de muito insistir com o filho, sem resultado, gritando para mim, já de
saída, na porta entreaberta, com um pé na varanda:
- F. G.
!!!!!!! (foi a primeira pessoa que assim me chamou, antes mesmo do professor
Lima (dos trabalhos manuais) me colar esse nome a pele no ciclo preparatório.
- F. G.:
Pretérito mais-que-perfeito de….? Quando eu respondia dava mediatamente um
tabefe no aterrorizado filho, que não tinha acertado. As vezes errava de
propósito, para proteger o meu amigo (e pensando que assim, vendo que era
difícil, não castigasse o filho); mas cedo percebi que nada adiantava (apenas
eu era proibido de sair e tinha que ficar de castigo com o meu companheiro de
infortúnio até as nove horas da noite a estudar), pois ele recebia o tabefe a
mesma. A mim nunca me bateu, verdade seja dita, mesmo quando erava. Acho que
havia algo na minha conduta que não o permitia fazer isso, ou apenas entendia
que não tinha esse direito. Seja como for, depois de responder, saia disparado
e essa hora já estava na rua no presente-mais-que – perfeito de uma bola nos
pés, esquecendo do coitado do meu amigo no seu imperfeito presente, feito de
insultos e palmatórias.
E assim foi passando o tempo até que um dia o
professor, frustrado pela incapacidade notória do filho em aguentar a “minha
pedalada”, gritou para ele:- burro, burro! Tu és português e ele é preto! E ele
sabe melhor o português que tu, filho e neto de portugueses. Não tens vergonha
na cara?
Talvez outro, no meu lugar, tomasse o seu
violento e amargo desabafo como um elogio, mas eu (embora com dez anos
incompletos) com aquela nossa mentalidade rude de Guineenses, recebi as suas
palavras como uma afronta, um insulto imperdoável (e de facto ainda hoje nunca
lhe perdoei essas néscias palavras); tivesse dito ao filho “és português e ele
guineense” sairia dali satisfeito, não teria havido todo o problema que se veio
a gerar; pois seria apenas a constatação de um facto e suas implicações.
Assim, possuído de uma indignação
inexplicável, fora de mim, possuído pela ira, sai de rompante (sem ao menos me
despedir), saltei o muro do quintal, que separava a casa deles da do meu avó,
esquecendo de ir jogar a bola, fui directamente para a nossa casa. O meu pai já
tinha voltado do trabalho, e sentado no quintal lia qualquer coisa; ao ver-me
em casa tão cedo, perguntou porque não fui a explicação; disse-lhe que o Sr.
Salgueiro chamou-me de “preto” e “eu não admiti isso…”. Embora adivinhando a
sua possível decisão às minhas palavras, por conhece-lo minimamente, não
contava com a rapidez da sua reacção. Como que picado por um mosquito, saltou
da cadeira, e sem mesmo vestir a camisa, apenas de camisola interior, pegou-me
pelo braço e saiu disparado, sem escutar a minha mãe que o queria acalmar, rumo
a casa do vizinho.
Acontece que
a minha mãe era amiga da mulher do oficial (essa família portuguesa vivia na
casa vizinha, casa do Sr. Domingos Fernandes - Nho Domingos de Dona Divige -
que vinte anos depois viria a ser o famoso restaurante português “Asa Branca”);
eram mais ou menos da mesma idade, passavam os dias a coser (quer dizer, a
minha mãe lhe ensinava a coser) e a conversar uma com a outra sobre os filhos e
a vida em geral, quando os maridos iam trabalhar. Por tudo isso ela ficou
angustiada, quando viu-me a ser arrastado pelo meu pai rumo a essa casa; ainda
virei para trás, e li apreensão na sua face; ali a olhar-nos, sem poder
contrariar o marido; ela conhecia o temperamento dele e imaginava que ia haver
muitos problemas para todos nós. Lembro-me que a reacção do meu pai também me
assustou, pois embora ainda não tivesse capacidade de analisar todas as
consequências do acto que ele ia praticar, percebia vagamente que ele, e possivelmente
a minha mãe, viriam a sofrer as consequências disso, como da vez da briga de
Farim, com os retalhistas mandingas e fulas.
Ao chegarmos
a casa do oficial português, bateu a porta com raiva, estava tão zangado que
apertava o meu pulso até fazer doer, sem mesmo notar; e eu tinha medo de abrir
a boca, já arrependido de o ter contado o incidente. Ficamos a espera uns
minutos que me pareceram uma eternidade. Quem abriu foi a esposa do Sr.
Salgueiro, que ao me ver, inocentemente, perguntou se eu não queria ir lanchar
com o filho (nesse momento este, ainda choroso dos sopapos, comia o habitual
lanche de pão com manteiga e leite).
A inocência e amabilidade dela para comigo, desarmaram
meu pai que se acalmou um pouco; mas mesmo assim, antes de eu poder recusar o
convite dela, respondeu por mim, dizendo que “filho dele não come em casa de
gente que o chama de preto”. A pobre senhora, que não sabia de nada, ficou
boquiaberta a olhar para nós...
O Sr. Salgueiro passou quase uma hora a
explicar ao meu pai que ele não teve intenção de me magoar, pelo contrário,
quem queria humilhar era o filho, por eu ser mais inteligente, etc., etc., e
outras explicações; que usou a palavra “preto sem intenção”, que tinha grande
apreço por mim… deu parabéns ao meu pai por ter um filho assim “tão esperto”,
etc., Tanto falou, tanto desculpou-se que o meu pai acalmou-se e ficou a olhar
para mim muito orgulhoso. Nunca imaginou, ou mesmo suspeitou, que eu fosse “tão
esperto” como o homem dizia (nem eu também, diga-se em abono da verdade; e como
ele, eu também ouvia tudo isso admiradíssimo, pois esse homem nunca me tinha
dito - ou demostrado - nada do que dizia agora).
O meu pai,
como bom Guineense - nunca demonstrava o afecto que sentia pelos filhos - e
nunca me tinha dito uma palavra de carrinho desde que tinha nascido (e de resto
nunca o fez, em toda a vida, até morrer). Mas nesse dia julguei ver um lampejo
orgulho nos seus olhos; e quando por fim a paz foi conseguida, e o Sr.
Salgueiro foi buscar uma garrafa de whisky para brindar as pazes com ele,
perguntou-me, casualmente, como se fosse um elogio, que nunca poderia fazer,
“porque diabo não vais lanchar com o teu pobre amigo?”
V
E assim, nesse longínquo dia, antes de existir
a Guiné Independente, entendi radicalmente, que havia os portugueses e os
guineenses; que eu e meu pai éramos estes, e o Zé Carlos e o seu Pai àqueles; a
partir desse dia, embora a nossa professora Dona Maria do Carmo, nos asseverava
todos os dias, que éramos todos portugueses, independentemente da nossa cor,
nunca acreditei nela. Ela, coitada, nem percebia que aquilo era uma falsidade,
pois como milhões de portugueses e africanos, acreditava piamente nisso.
Nesse dia,
entre outras coisas, entendi que a música do cantor Brasileiro, Agnaldo
Timóteo, “O meu grito” era a música preferida do meu pai, pois a escutou varias
vezes como forma inconsciente de auto satisfação, de dever cumprido, de sentir
que embora com perigo “fez o que devia ser feito”.
Mas o mais
importante, nesse dia, entendi que o nosso povo, os Guineenses em geral, “não
temem a verdade, da mesma maneira que não temem a morte” Por isso devo dizer
que, muitíssimo antes do meu exercício “científico” de lazer acima”, entendi de
modo inabalável que “guineenses oça
morto ma é cá medi bardaditambê. Mas “Ioçabardaditambéninkupago
i morto”.
Portanto o
adágio deve ser a soma destes dois - se alguém os poder juntar fazer um só, num
exercício igual ao meu anterior, agradecia - e não o outro que deturpa a
essência da nossa realidade. Mas entendo o erro do nosso povo (embora“bureçaka`sta na povo”) quando o criou -
nas suas lucubrações e divagações sobre a justiça e a verdade - pois se tudo
correu mal no nosso país, porque é que os provérbios estariam correctos, numa
estranha excepção? Pois no caso deles “nem a excepção confirmaria a regra” como
habitualmente em outras ocasiões.
Desculpem o
cansaço de terem que ler um pouco mais do que gostam, mas infelizmente não consegui
resumir mais…
Fernando
Teixeira
Bissau, 2 de
Maio, do ano em que o povo mais precisa de não ser burro.