quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Continuação...Gui de Bolama

Arq. Fernando Teixeira

GUI DE BOLAMA, GUILLAUME DE BISSAU, DIRECTOR THIERIOT E UM CERTO GUILHERME, QUATRO HETERÓNIMOS DE UMA EXISTÊNCIA

Duas semanas antes do “dia da compulsão”, fui assistir a festa de despedida de Guillaume Thieriot feita por artistas Guineenses. Foi, creio, a melhor de todas; uma profusão de cores, grupos de “mandjuandade”, de teatro, actuações de dezenas de músicos e cantores, leitura de poesia, cocktail, discursos, danças, etc, etc. Esta era a segunda despedida dele que assistia, entre tantas outras que foram feitas em sua honra. Mas desta falarei a frente, por agora, pela pressa e método este, de “ir devagar”, falarei da primeira que assisti na Embaixada francesa, feita, portanto, pelos seus compatriotas franceses e colegas diplomatas.

Num sóbrio cocktail, o discurso do (Embaixador) Encarregado de Negócios, também foi sóbrio, embora simpático e elevado, como é de praxe nestas cerimónias. Mas o que me leva a esse dia é o inusitado (pela forma e conteúdo) discurso de agradecimento do homenageado, a que já fiz referência, uma verdadeira peça de oratória, da altura de um Rui Barbosa (seu também compatriota). Mas o importante para mim, foi que nesse discurso de agradecimento encontrei o cerne do seu pensamento no que tange a Guiné. Um agradecimento que agradece e retribui num desprendimento de alma que levanta um pouco o véu sobre a seu pensar, a sua concepção do mundo em que vive, e particularmente sobre este mundo guineense, crioulo, que em breve deixará.

Mas como este texto não é uma pequena biografia mas a tentativa de dar um vislumbre do seu pensamento sobre nós, resolvi que quero ir para além do que o que ele próprio disse, sobre si (e sobre nós), nesse seu “discurso do método” (do de se ser um homem digno), de despedida. Por isso, embora este texto não seja um “texto sobre outro texto”, esse discurso vai-me ajudar a explicar o “director” Thieriot , o “pauvrehomme ” Guillaume e o “nosso compatriota” Gui de Bolama. Mas não só; esse discurso, vai-me permitir falar de nós guineenses, neste particular momento político em que vivemos.

Simples, mas emotivo, foi um discurso onde ressoava não a vacuidade de um conhecimento poliglota enfatuado, mas o respeito pelas línguas em que expressava. Trilingue (plurilingue?), de uma perfeição e beleza notáveis, numa profusão de vocábulos em três idiomas a vez, mas por onde perpassava um sentimento profundo de ligação a esta terra e de genuíno interesse pelos destinos deste povo. Esse magnífico discurso, que dividido em três partes, respeitando assim as regras do discurso, que organiza o texto em três partes principais a saber “apresentação”, “explanação” e “conclusão”, é também outra vez dividido em três partes linguísticas, se assim posso elucidar, pois começa em crioulo e termina em português, separado pelo francês.

Entrando e saindo destas línguas em velocidade de cruzeiro, mas em mudança automática, sem contradições, ligando-as e completando-as numa simbiose de vocábulos e interjeições apreendido por todos, mesmo aqueles que só falavam uma das línguas. Por agora vamos ouvir o director Thieriot que nos leva a um passeio pelas suas reminiscências e vivências, seu percurso acadêmico e profissional, com as suas “sortes e azares” pelo meio, que nunca dependem de nós; ficamos a saber muitas coisas, mas mesmo assim poucas, pois é uma rica vivência que quase parece que não foi aqui. 

Ficamos a conhecer Michel Flesch (…. qui m’a accueilli avec bienveillance, et soutenu mes pas de débutant dans le réseau français de coopération et d’action culturelle…), a saber de Jean-Claude Buyck (alors premier conseiller, nous avons travaillé en confiance et dans le respect des rôles de chacun...) e de Jacques Courbin (… qui a été de bref passage ici, et cependant décisif …). O anfitrião escutava atentamente, e como nós, veio a saber que ele foi « …celui qui a été le plus présent au centre culturel, et qui a montré le plus grand intérêt pour la société civile guinéenne, et singulièrement celle des artistes et des intellectuels qui ont une deuxième adresse à Praça, au CCFBG. … Leur soutien – et avec eux celui de tous les services de l’ambassade –, a été total, donc précieux… »
Por fim, exausto, sem querer, vai pouco a pouco, abrir-nos a alma do pauvrehomme Guillaume, que assim, sofrendo, entra pelas nossas almas adentro, sem pedir licença, cônscio que está que tem todas as licenças… “(…)Ma ami i ka so Blamensi i diretor di centru francis... Ami tambi i papé di dus mininu, 2 fidju brancu n’pelele ki misti presença di sê papépertu delis. (…)

As nossas almas, emperdinadas que são, habituadas a todos os sofrimentospossíveis numa existência, não deixam de se condoer com esta tirada que nos fala da realidade nossa que não lhe permite ficar, embora fosse o seu mais intimo desejo “(…) Enton, n’na baipaotru terra mas mindjorpaelis. Ku mas estabilidadi. Ma dantes, n’misti fala bosobrigadudifundudinhakorson. (…)”
Condoemos, mesmo que apenas por que também tivemos filha que não vimos crescer e que se um dia, como ele, nos tivessem dado a escolher, também teríamos ido para outra terra melhor para ela…

Assim embrenhado nos meus pensamentos, nos meus sofrimentos “possíveis numa existência” oiço-o a falar com carinho desta terra e povo. Mitiga a alma, ouvindo-o a citar nomes de pintores, compositores e poetas que trata respeitosa e carinhosamente de elefantes. Ao menos isso, na falta de tudo, de tudo o que perdemos, numa existência em que as perdas são maiores que a própria existência.
Por fim, o homenageado director do Centro Cultural, para controlar a emoção que se apodera de todos nós, toma a palavra ao pauvrehomme Guillaume e diz: “Vou terminar em português. Que é a língua de uma certa forma que me trouxe aqui, mesmo se, rapidamente, compreendi a importância do crioulo guineense.”

Na verdade não vai cumprir o prometido e terminará em crioulo. O Gui de Bolama, esse está quieto, sabe que nasceu a tão pouco tempo, que talvez não deva dizer nada. Afinal está em terras estranhas, em Bissau, numa localidade que nunca ouviu falar em Bolama, que se chama Penha, onde se situa esta imponente Embaixada. Como um heterônimo de Fernando Pessoa, navega em águas que não são suas; sim seguramente não são águas de Bolama. E como bom Guineense aproveita para misturar-se com os convidados, quer provar de tudo, acepipes franceses, tão raros em Bissau. Em Dacar sim, diz-se que eles estão em cada esquina, como os nossos "donetes" aqui. Mistura-se com os convidados e mistura as palavras do orador com o que sabe e não sabe, em suma o que imagina; e parado num grupo de artistas no meio da sala, diz deste seu heterônimo (pauvrehomme) Guillaume (que de todas as formas conhece melhor que nós), que aos quarenta anos, de potencial político, candidato a eleições, depois de ter sido chefe de Gabinete de um autarca e conhecer as lides políticas, resolve dar o mais ariscado passo da sua vida, abandonar tudo, a França eterna, a boêmia Montmartre, as cálidas águas de Côte D`Azur, as visitas semanais ao Louvre, os passeios dominicais nos Champs-Élysées, e ir atirar-se para o desconhecido; ir para um país, que os seus amigos nem conseguiam encontrar no Mapa-Mundo.

E eis que não acontece a agradável surpresa de ali vir a encontrar uma cidade chamada Bolama, onde um certo Francis Drake, tetravó dele passou um dia há mil anos a caminho do Brasil, e lá se apaixonar por uma índia, para - como o Pedro Álvares Cabral (segundo a Banda Eva?) - a levar numa caravela para as maravilhosas costas da Bretanha, a beber champagne na província de “La Champagne” (dizem que a índia fez um muxoxo quando provou mas depois adorou, naquele tal de “primeiro estranha-se, depois entranha-se”). Ali onde depois de muitos invernos frios e primaveras radiosas , das praias de Brest partiram (com uma revista de Astérix para ler pelo caminho) de volta as terras de Vera Cruz aonde viria ao mundo o nosso Guilherme. Guilherme? Quem é? Pergunta uma senhorita, desculpem, responde ele, gingando o corpo como só os marítimos fazem, é que Gui, em Bolama, é diminutivo de Guilherme… no Brasil tambem diz está, toda entendida.

É salvo in extremis pelo (pauvrehomme) Guillaume, que nesse momento tomando a palavra ao director , faz todo o mundo prestar atenção; tinha chegado a fase final do discurso, da conclusão. Na emoção do momento, esquece a promessa feita a Portugal, pelo director Thieriot, de terminar a oração com lusitanas estrofes, e deslembrando também da diplomacia, diz: Vou terminar como comecei. Dizendo simplesmente obrigado (di fundu di nha korson).

Bem, como “di fundu di nha korson…” parece mais com o crioulo do que com o português, tanto nos vocábulos como na beleza, por issso disse que acabou em crioulo. O Gui de Bolama, sem entender nada, olhou para o (pauvrehomme) Gullaume e deu os ombros; a este que aproximou-se interrogativamente, disse baixinho: “outra vez em crioulo…" este faz-se de desentendido e pergunta-lhe em português “o quê?” Este responde responde com dificuldade (estava deglutindo pela primeira vez na sua vida uma porção foi de repente regado com um fresco moetchandon) com a boca cheia: na kriol mas um bias dê!!!

O pauvrehomme Guillaume, sem saber o que dizer, partiu ao encontro dos convidados abraçando uns e outros, agradecendo, sabendo que, provavelmente, em breve todos eles serão espuma do tempo, recordações de um sultanato perdido na floresta, um Zamunda, algures na imensidão da Africa. E como um Príncipe Akeem, ao contrário, que não parte de Nova Iorque para África com a sua amada na garupa, mas apenas da Africa Atlântica para a África do Indico, que sendo uma mesma grande Africa é a única de todos nós, dele, de mim e de ti.

Ao lembrar disto, o pauvrehomme Guilaume volta para junto do Gui de Bolama, a tempo de servir-se do ultimo pastel da travessa, que esvaziando com atenção de não deixar desamparado, e lhe disse, fazendo “tchin-tchin” com ele: “você deturpou as minhas palavras, o que realmente disse, foi o seguinte: “… Dona dinha dona dinha dona, um alemao ku tchama Müller, ora ki baiba pa Brazil, i para ba na djiu di Bolama, nunde ki fika ba um bocadu k unha dona fémia dinha dona fémia dinha dona fémia, si kombossa, mamé dinha dona dinha dona dinha dona ki bai ba pa Brazil ku alemao ku tchama Müller.”


Bem, agora já não sei se o Gui di Bolama que ouviu mal ou se fui eu (eu estava naquela roda de artistas), mas como quem esta a escrever é que tem responsabilidades (acrescidas, como se diz por aqui) aceito que fui eu, na ânsia de escrever um texto bonito. “Bo obi diritu ?” bem estas ultimas palavras em crioulo são emprestadas ao Guillaume (pauvrehomme).