Fernando Teixeira e Guillaume Thieriot
UM ILUSTRE DESCONHECIDO
Como Gui
di Bolama já falou dos brasões familiares do Guillaume Thieriot, resta-me
voltar as palavras dele, agradecendo a nossa presença e o gesto em sua honra.
Pois foi neste dia que fiquei a conhecer um pouco mais do percurso de vida
deste cavaleiro. Durante a sua emotiva intervenção, Guillaume Thieriot acabou
descerrando um pouco o véu sobre a sua vida privada (origens familiares) e
profissional, e como veio a chegar a esta martirizada terra.
Nesse
momento compreendi que pouca coisa conhecia da vida pessoal, para não dizer
privada, deste homem afável e pausado. Mas como ele não é meu amigo isso era
normal. nunca tomamos um copo juntos ou coincidido sair numa campainha comum,
embora Bissau seja muito pequeno. Nem o número do telemóvel dele alguma vez
tive no meu.
Nunca o
conheci na intimidade, salvo uma vez, que o vi sentado no “café” Benfica,
rodeado da esposa e os dois filhos, que vieram de visita, creio. Pela
proximidade e exiguidade do espaço, mais do que pela educação, não pôde deixar
de o cumprimentar (e já agora, não me apresentou a esposa, pois como disse, não
eramos amigos. Mas como disse , não eramos amigos, nem sei se alguma vez fomos
camaradas (“Cau pera sabura pa kunsi camarada. Sabura sucuro pa cunsi camarada”, bu
lembra Guilherme?).
Friso isto por ser verdade e por uma outra
razão; temos que começar a ser criteriosos no uso das palavras; toda gente,
aqui, diz que ele era um amigo e vice versa. Discursam dizendo “o meu amigo
Gui” e depois, isto ou aquilo. E muitas vezes esse tratamento não correspondia
manifestamente a verdade).
Mas
gostaria de ter sido seu amigo e o digo isto aqui sem nenhum pudor (se devemos
ser rigorosos com as palavras, muito mais com os sentimentos) pois raramente em
minha vida “quis”, conscientemente, “ser amigo” de alguém. Por isso
possivelmente este texto é escrito também desta maneira como o escrevi, com
algum sentimentalismo, mas sem vergonha do mesmo, pois como o G. K. Chesterton
disse há tantos e tantos anos atrás, "O miserável receio de ser
sentimental é o mais vil de todos os receios modernos." Por isso que Deus
me ajude de não albergar esse “miserável” sentimento na minha alma quando falo
deste outro senhor.
Mas “não
ser amigo” é apenas uma condição necessária, mas não determinante, para o que
dizemos. Quando digo que não somos amigos, quero que também entendam que por
essa razão não o conheço, tudo o que viu, fez e ou mudou nesta terra. Por isso
pouco posso dizer, mas mesmo assim, ainda há algo a dizer por mim. Assim, deste
“não amigo”, deste “ilustre desconhecido”, qual um Cyrano de Bergerac
Guineense, posso falar com tranquilidade e distanciamento.
Entendi
algures que ele não quereria mais uma homenagem depois de tantas que lhe foram
prestadas, mas realizações. Ou diria que a homenagem que mais lhe agradaria
seria a realização dos seus sonhos para nós que são tão grandiosos como
simples: “(…) se acreditarem na sua língua, na sua cultura, em vocês mesmos,
poderão fazer coisas maiores (…)”
Daqui parto para essa dimensão mais humana dele.
Como disse não quereria que dele falasse, elogia-se e dissesse coisas bonitas,
por mais merecidas que fossem, apenas por dizer. Mas aqui, através do
Guillaume, devo falar de uma outra dimensão, a dimensão dos que ele influenciou
consciente ou inconscientemente. Como exemplo dou o de um grupo musical
Guineense (da qual nunca tinha ouvido antes falar sequer), chamado
estranhamente de “Exercito de Já”, que irrompeu pelo palco do Centro Cultural
sexta passado a cantar música Reggae.
O vocalista, uma cópia jovem do grande Bob Marley,
mas com todos os maneirismos deste, brindou-nos no fim com umas eloquentes
palavras em inglês, português, crioulo (e uma tentativa pouco conseguida em
Francês); basicamente disse que agradecia ao Guillaume por ter sido o primeiro
que neles confiou neste país e o primeiro a lhes dar uma oportunidade de
poderem apresentar-se ao publico tocando a sua música. O primeiro a acreditar
neles (podia ter sido o último em não acreditar, ou mais um apenas, que não
acreditou)? Aceitam que para estes jovens esta dimensão é diferente de tudo a
que estão habituados neste país? Bem, falei destes, que conheci, mas quantos
outros haverá que só Guilherme conhecerá porventura? E porque ele e não nós?
Entendo que a “mudança de pensamento” na direção
de valorização da cultura, nunca deve ser um fim em si, mas apenas um caminho
para a valorização de homens como um todo, como um “conjunto de homens” unidos
por um destino comum, que muitos teimam em não ver. . Em outro lugar afirmei
que “não se salva um povo pela economia, mas pela cultura” , querendo com isso
dizer que se a economia é a base sem a qual nada é sustentável, a cultura é a
superstrutura sem a qual não existe e não existirá a nação.
II
Há frente
vos falarei da cidade de Moscovo e a sua ligação (!) com Guillaume Thieriot,
através de mim; ou a minha ligação com essa cidade através dele; Já nem sei a
quaantasando, mas por agora quero vos contar uma pequena história que veio dar
o título a este texto. Pouco depois de ter concluído a faculdade, um dia em
Moscovo, tendo levado a minha esposa e filha ao aeroporto de Sheremetievo a fim
de viajarem para Lisboa, na volta conheço um velho latino americano, que já
vivia há muitos anos em Moscovo. Como o metro é tão grande como essa cidade de
12 milhões de habitantes, demoramos quase uma hora a chegar ao centro. Pelo
caminho falamos de muita coisa, desde Mayakovski ao Balet Russos, passando
pelas lutas de libertação, Cuba, Angola, perestroika (que estava no seu auge),
Gorbatchov e de outras coisas também importantes, como da beleza das mulheres.
Moscovo é uma cidade de mulheres bonitas que
entram e saem das carruagens do metro numa profusão tal que era impossível
apreciar cada uma delas mais do que três minutos inteiros. Na altura, capital
de um gigantesco estado multinacional e transcontinental, nessa cidade havia
todos os tipos de mulheres que existiam neste mundo; desde caucasianas,
asiáticas, orientais, indianas, chinesas, mongolianas, e de todas as variações
possíveis dentro desses grandes grupos. Loiras, ruivas e morenas (todas as
tonalidades imagináveis de loiro, ruivo e moreno) de olhos azuis, verdes,
negros, e tantas outras impossíveis de quantificar.
Era tanta beleza em cada carruagem que era impossível
catalogar. A tentação de olhar para todas, de por um minuto ter nos nossos
olhos essas maravilhas da natureza, era grande, mas os olhos eram apenas dois e
de nenhuma maneira era possível. Abatido pelo cansaço, acabei desistindo , e o
velho que apreciava os meus olhares, enquanto respondia as suas perguntas,
disse meio sério, meio a brincar, algo que até agora não esqueci, embora que
passados vinte anos: “Fernando, no se puede tener a todas las mujeres del mundo,
pero tenemos que hacer lo posible”, ou qualquer coisa de muito semelhante; isso
me fez rir tanto, como ainda rio agora ao relembrar. Mas só conto isto, porque
com apenas quinze anos, sem ainda conhecer nem Dacar e muito menos Moscovo,
resolvi ler toda a biblioteca nacional, em apenas três meses (férias grandes).
Nessa altura, depois da minha frustrada
tentativa (também abatido pelo cansaço, decepcionado comigo mesmo, quando as
ferias findaram), continuei com a minha decisão; mesmo no período escolar
sempre que podia a ir a essa biblioteca. Embora já tinha percebido que a
decisão tomada era irrealizável. Mas a analogia que encontrei entre as duas
situações me fez pensar que então, a dificuldade já era a mesma, por isso a
decisão, embora inconsciente, deveria ter sido igual: “não se pode ler todos os
livros do mundo mas devemos fazer os possíveis”.
Mas nem tudo foi perdido, nessa minha tentativa,
pois conheci escritores que nem imaginava existirem. Mas para este texto só
falarei de um que tinha escrito livros com títulos estranhos, como “O HOMEM QUE
ERA QUINTA FEIRA”, “NAPOLEAO DE NOTINGHAM HILL “, e outros tão estranhos como
estes; chamava-se Gilbert Keith Chesterton. É inspirado nele que vou buscar o
meu título para este texto e uma descrição para o meu homenageado: O HOMEM QUE
ERA UM CLAMOR.
Assim chamei Guillaume de “Um Clamor”; de facto
foi um clamor na noite escura da cultura Guineense. Pois um clamor mais que uma
luz, chega a todos. Uma luz só é vista por quem olha em sua direcção, mas um
clamor é espalha-se por todas as direcções; acorda-nos mesmo se estivermos a
dormir. Sendo como ele, um homem temerário nas palavras, chamo-o como deve ser
chamado. Que dizer mais dele? Ou por outro, o que não deve ser dito, o que é
pouco relevante, o que pode ser deixado de lado da vasta obra do Sr. Thieriot? Se
não estamos a escrever uma biografia , como medir a importância deste vulto
para o nosso país? Desse que se orgulha de nós, as vezes mais do que nós próprios?
Nas suas emotivas palavras
“N’ta sinti orgulhu kada bias ki n’tene ki fala di Guiné
Bissau la fora.”
Eu sinto orgulho de ouvir você dizer que sente
orgulho de nós Guillaume, porque sei que é desinteressado, é apenas, produto da
amizade e vivência comum. Prevejo que esta vivencia venha a dar frutos e coroar
mudanças que já despoletou, prevejo profundas mudanças na nossa maneira de
relacionar-mos com a nossa cultura.