Geraldo Martins*
Homenagem
A
Quem Me Ensinou A Excelência
Pela quarta vez no jogo, lancei a bola para o cesto,
fazendo três pontos. Ao salto certeiro, contrapôs-se uma queda brutal.
Contorcendo-me de dores, levantei-me lentamente do chão,já físicamente
diminuído.
Na manhã seguinte, sentei-me na aula, o braço direito
imobilizado por uma camada espessa de sulfato de cálcio. O gesso na mão
recusava-me a escrita (a mão esquerda é inválida para o ofício).
Como escrever então
os apontamentos que o professor ditava em voz alta?
Como uma bússola, a colega ao lado apontou a solução. Colocou
o meu caderno ao lado do dela e, com uma rapidez impressionante, pôs-se a
escrever alternadamente nos dois cadernos.
Escrita
limpa,
Caligrafia,
uma obra de arte,
Rima
científica,
Ponto
final.
E
nenhuma palavra se perdeu pelo caminho!
Eu já admirava a sua enorme inteligência abstrata –
aquela inteligência que transcende o mero domínio material do conhecimento. A
partir daquele dia, ou mais precisamente daquele alucinante exercício de
escrita, passei a admirar-lhe uma certa
inteligência concreta –a capacidade de escrever duas vezes mais rápido do que
todos os outros.
Na época, o Liceu Kwame Nkrumah era um campo de
concentração de cérebros audaciosos que aspiravam elevar-se até ao céu.
Havia os “solucionadores
de problemas”, cujos cérebros funcionavam como dínamos, que em vinte
segundos banalizavam um complexo exercício de trigonometria.
Havia os “eruditos”,
capazes de dissertar sobre qualquer assunto com uma fluidez espantosa.
Havia também os “quietos”
que, sem pertencerem formalmente a nenhum dos dois grupos, surpreendiam a todos
com as notas mais altas em qualquer prova.
Os primeiros, arrastavam um horda de seguidores
fascinados pela magia do cálculo. Os segundos, atraíam admiradores confusos que
perguntavam que livros tinham lido que eles não tinham lido. Os quietos, como
era de esperar, conseguiam a extraordinária proeza de confundir os
super-dotados dos dois grupos.
A que grupo pertencia a minha colega?
A nenhum. Ela era tudo isso mais alguma coisa; essa alguma coisa que ninguém consegue
decifrar.
Foi com esta descoberta que comecei a entender a natureza da
excelência. Uma pessoa brilhante não se explica. Ela é apenas brilhante.
Brilha!
Mas qual é o conteúdo do brilho? Não sabemos muito. Mas
consta que o brilho não está apenas nas notas persistentemente altas,
desafiando o ciclo natural de vida (que tem altos e baixos), mas também no estilo
profundamente sedutor, no carisma, na confiança, e ainda no mistério. Isto é, o
brilho está, simultaneamente, na substância e na forma, as quais se articulam
maravilhosamente, a substância moldando a forma,
e a forma, por sua vez, moldando a substância.
No mundo das pessoas brilhantes coexistem duas externalidades
opostas – a dádiva e o mito. A dádiva é a externalidade positiva. Todos usufruem do brilho sem
pagar nada. O mito é a externalidade
negativa, a possibilidade da interpretação livre das razões do brilho, que, esta
sim, pode trazer consequências imprevisíveis, como naquela tarde em que a minha
colega, sentada na sala de aula no Ciclo do Bairro de Ajuda, lhe arrancaram o
fio de ouro que trazia à volta do pescoço, os autores de tal ato acreditando
que, naquele fio de ouro,estava o segredo do sucesso, numa desesperada e fútil
associação entre brilhantismo e misticismo.
Para as pessoas brilhantes, o tempo é amigo, porque tudo
dá certo, e cada vez mais certo à medida que o tempo passa.
Um dia, a minha colega supreendeu-nos com um anúncio:por
razões familiares, iria viver em Portugal, imediatamente. Tínhamos acabado de
concluir o sexto ano e começado o sétimo. Adaptar-se-ia à nova vida? Teria
êxito lá onde nos parecia que estudar era coisa mais séria? Ninguém pareceu
preocupar-se muito com o seu destino, o que, olhando as coisas em retrospetiva,
não deixa de ser injusto. Mas quem perderia o seu tempo a preocupar-se com a
possibilidade de uma pessoa brilhante deixar um dia de ser brilhante? O
brilhantismo é uma constante, como C
na fórmulamágica de Einstein.
Ela partiu então para a Cidade Invicta e, como na
odisseia, chegou, viu e venceu. Terminou
o liceu. Seis anos depois, voltou a Bissau com um diploma de medicina no bolso.
Quando nos encontrámos, enquanto falávamos, eu olhava para aqueles olhos
perspicazes, e pensava:
Aqui
está a excelência.
Pensei, com alguma ironia, que excelência é a palavra do dicionário mais mal utilizada.
Bom dia excelência,
diz-se a um ministro que passou dez anos a fazer o seu curso, e que nada percebe
do que anda a fazer.
Alguns anos antes – nos idos tempos do liceu –, naquele
universo académico maluco onde cada um procurava superar-se a si próprio, ela se
tornarao ponto de luz para onde se dirigia o meu olhar. Sem o saber, ela era a
minha referência no exercício pessoal de auto-motivação.
A carreira profissional da minha colega foi meteórica.
Ainda a vi a exercer medicina. Ela era boa médica? Como podia eu saber?Mas
precisava mesmo? Sabia que era.
Anos mais tarde, decidiu abraçar a saúde pública. Preparou-se
para o efeito, entrou para uma organização internacional e, gradualmente, começou
a subir a sua escadaria, até se sentar numa cadeira de honra.Num mundo onde a
competição é cada vez mais global, aquela cadeira que ela ocupa está impedida a
muitos talentos.
Apesar disso, como todos os grandes espíritos, ela
continua a ser aquela mesma pessoa humilde e discreta que conheci nos
primórdios da nossa saga liceal. Às
vezes chego a pensar que a sua humildade é inversamente proporcional à sua
capacidade.
Em Windhoek, na cadeira mais importante da Organização
Mundial da Saúde, está sentada a minha colega. Ela continua a oferecer a sua
genialidade a uma África que ainda não despertou completamente do pranto.
Magda Robalo
Em Windohek, com a sua linda família, vive a Magda, a
minha colega.
*Geraldo Martins - guineense, ex-ministro da Educação Nacional, Cultura e Desporto e especialista em Desenvolvimento Humano no Banco Mundial