Maria Barroso encontrou em Mário Soares a mesma
vontade de intervir no mundo
Fonte:
Expresso
No
aniversário recente, comemorado no início de maio, Maria Barroso
completou 90 anos, sem que o acumular do tempo denunciasse (segundo
confessava António Valdemar, no texto publicado no "Público") a
vontade de se apartar da vida ativa e implicada que sempre a caracterizou:
"Os olhos continuam despertos para o mundo que a rodeia e exige a
partilha de compromissos de solidariedade para transpor a incerteza, a
violência, a desigualdade e estabelecer uma cultura de justiça, de tolerância e
diálogo."
A
mulher que acompanha Mário Soares há mais de 60 anos, desde que o
conheceu quando frequentava a Faculdade de Letras de Lisboa e com ele
casou logo a seguir, em 1949, tem uma vida onde cabem várias vidas, e muitas
lutas, artísticas, pessoais e políticas.
Nasceu
em Olhão, a 2 de maio de 1925, filha de Alfredo José Barroso, oficial do
Exército, e de Maria da Encarnação Simões, professora primária. Maria Barroso é
a quinta de sete filhos. Quando tinha um ano o pai foi colocado
em Setúbal, mas já foi Lisboa que conclui a quarta
classe.
Na
capital, estudou Arte Dramática, na Escola do Teatro do Conservatório Nacional
(1951) e Ciências Histórico-Filosóficas. Ainda jovem estreou-se na companhia
Rey Colaço-Robles Monteiro, sedeada no Teatro Nacional D. Maria II. Entre 1944
e 1948 subiu a palco em mais de uma dúzia de espetáculos, destacando-se em
"Benilde", de José Régio. O mesmo texto que inspira Manoel de
Oliveira, e o leva a fazer o filme "Benilde Ou A Virgem Mãe), e ao qual
ela volta quase vinte anos depois. No cinema, estreia-se com Paulo Rocha
("Mudar de Vida", 1966) e repete Oliveira: "Amor de
Perdição" (1979) e "Le Soulier de Satin" (1985).
O
castigo para quem tem coragem de se desviar da norma vigente conhece-o
muito cedo, através do pai, e da deportação para Açores de que este foi
vítima. Não repudia o modelo paterno, a luta pela liberdade e pela
democracia, e por não o esconder é impedida de
representar.
Antes
mesmo de se casar com Mário Soares, e enquanto este está na
prisão, obrigam Maria Barroso a demitir-se do Teatro Nacional D. Maria II.
Os poemas revolucionários que diz para dar voz ao descontentamento
levam-na a ser interrogada na PIDE.
Em
Mário Soares, Maria Barroso encontra a mesma coragem, o mesmo desejo
de lutar por um mundo melhor. Tal como a mãe, experimentará a deportação
do marido, quando Soares é enviado para São Tomé, em 1968. Segue-o, deixando
para trás o Colégio Moderno, em Lisboa, que havia fundado. Mas, mais uma vez, o
regime não tem vontade de lhe facilitar a vida, e Maria Barroso é impedida
de se empregar como professora. Com Mário Soares tem dois filhos: João Soares e
Isabel Soares.
Em
1969, apresenta-se como candidata a deputada pela Oposição Democrática e
participa no II Congresso em 1973, onde é a única mulher a intervir. Participa
na fundação do PS, na Alemanha. É eleita deputada da Assembleia da
República em 1976, 1979, 1980 e 1983, e torna-se primeira-dama de Portugal
entre 1986 e 1996.
A sua
presença na política e na sociedade civil manteve-se interventiva. No ano
seguinte ao fim do mandato de Mário Soares, Maria Barroso assume
a presidência da Cruz Vermelha Portuguesa, e recebe a Grã-Cruz
da Ordem da Liberdade.
Em
todos estes anos envolveu-se na luta contra o racismo, a xenofobia, o
antissemitismo, a exclusão social, a violência. Mas para sabermos de que
qualidade é o sangue que lhe corre nas veias, é bom lembrar que o
pai comemorou os 74 anos na Rua António Maria Cardoso, em Lisboa, a
sofrer os horrores da tortura do sono. Talvez esta memória
seja apenas uma daquelas que faz com que esta mulher pequenina,
charmosa, e bonita não se permita a apartar dos desarranjos
do mundo, mesmo quando conta 90 anos.