segunda-feira, 6 de junho de 2011

Entrevista com o Professor Fernando Bastos Loureiro


Entrevista na integra com o Professor Fernando Loureiro Bastos

Esta entrevista deveu-se ao fato do Professor Fernando L. Bastos ser membro da comissão organizadora da “Conferência Nacional para a Paz”, e assessor científico da Faculdade de Direito de Bissau. Quatro anos a viver em Bissau, Loureiro Bastos, reparte a coordenação científica nesta instituição de ensino superior guineense de referência (nos últimos 20 anos, formou cerca de 300 juristas, 30 Mestres em Direito e 1 Doutorado) com a regência da cadeira, Direito Internacional Público.

Mesmo assim tem tempo, e está a concluir um estudo sobre o apuramento do estatuto jurídico da mulher e a codificação dos mecanismos tradicionais para resoluções de conflitos contemporâneos e atuais na Guiné-Bissau. Como o Prof. sublinha “é um estudo científico sobre os Direitos Consuetudinário «ou para ser mais percetível» Direito Costumeiro de várias etnias (papeis, manjacos, mancanhas, balantas, fulas mandingas e etc...) da Guiné-Bissau”.
Especialista em Direito Internacional Público, conferencista nas áreas do Direito Constitucional e Eleitoral, Professor Fernando Loureiro Bastos é também autor de várias obras literárias na área do Direito. Ex: “Ciência Politica” ou “A Internacionalização dos recursos naturais marinhos”- Publicações com chancela da Faculdade de Direito de Lisboa. E quando se lhe pergunta o que pensa da Guiné-Bissau, não hesita em responder “ um país magnífico que precisa de Paz e de uma oportunidade franca dada sobretudo pelos guineenses…”


Ordidja - O tema central quando se fala em reconciliação na Guiné-Bissau, tem sido a Justiça. Até que ponto acha que esta conferência poderá contribuir para que realmente os caminhos da reconciliação e justiça sejam encontrados?
Prof. Fernando L. Bastos – Faço parte desta comissão desde do inicio, portanto a comissão foi criada em Maio de 2009, há dois anos, e fui convidado porque sou assessor científico da Faculdade de Direito de Bissau, e sinto-me honrado em fazer parte desta comissão.

À comissão tem muita importância para ajudar os guineenses a perceber melhor a sua própria realidade. Porque quem está fora tem uma realidade relativamente destorcida, as noticias dos últimos anos não ajudaram nada a imagem da Guiné-Bissau, porque centraram-se num aspeto que é importante, mas não é a única coisa que acontece na Guiné-Bissau, que é a questão do Narcotráfico que, não é a Guiné-Bissau na sua totalidade.

E isso ajudou a destorcer a imagem, mas os próprios guineenses que vivem na Guiné, às vezes não têm uma exata compreensão do que é o seu país e nem todas as suas dimensões, portanto esta Comissão quando procura reconciliar isso passa obrigatoriamente por ajudar a conhecer melhor a realidade do próprio país e procurar a Paz, mas também procurar o Desenvolvimento.  

O país está realmente numa situação de estagnação do ponto de vista económico que precisa ser ultrapassado. Por isso é preciso as pessoas conhecerem melhor e, saberem identificar os problemas, vão  poder tentar resolve-los.

O problema da Justiça, é relativamente um problema que tem a ver com o Direito, e como as pessoas olham para o Direito. Isso leva-nos para um ponto interessante (focado até durante esta conferência) isto porque temos uma coisa que se chama Direito Ocidental ou o Direito Escrito, que é basicamente o equivalente ao direito que vigora por exemplo em Portugal e o Direito Consuetudinário ou Direito Costumeiro. Como o Estado não tem sido forte, até ao presente, há muitas áreas da vida social em que na regulação é usado o costume em detrimento ao direito escrito. Há pouco (no decorrer da conferência) uma pessoa falou dos Direitos das Sucessões, por exemplo; há muitas regras em várias localidades na Guiné-Bissau onde às mulheres têm um papel, completamente subalterno, chegando ao ponto de não terem direito a herança dos maridos, bens que elas ajudaram a construir.

Portanto, há muitas questões de conflito entre estas duas formas de fazer Justiça. Mas em relação à Justiça na Guiné-Bissau, outra coisa é quando se entra nas questões em que se pede maior Justiça, por exemplo os casos gritantes de assassinatos, que exigem investigações que não têm sido suficientemente rápidas, para que se possa chegar a uma conclusão, para se ter uma apreciação de quem praticou os atos.

Existe também uma outra questão mais ampla e flagrante, quando se fala da Justiça na Guiné-Bissau, que é o acesso das populações ao Direito ou o acesso a Justiça. E tem que se decidir o que deve ser regulado pelo costume, onde existem por vezes violações em relação ao Direito das pessoas, por exemplo, com relação à práticas de alguns costumes, e o que deve ser regulado pelo Direito do Estado. Portanto, existe ainda muito caminho por fazer para que realmente haja maior Justiça, na Guiné-Bissau.

O – Falou a pouco da questão, das investigações e de a justiça ser mais célere. No caso por exemplo dos assassinatos, as autoridades guineenses, escudam-se sempre com falta de meios para a investigação desses processos, que acabam normalmente por ser extremamente morosos e, na maior parte das vezes, inconclusivos, considera que essa justificação é aceitável?
F.L.B – Convém compreender que esses processos não são estritamente de natureza jurídica, porque são também de natureza política, portanto é evidente que a demora possa ter a ver com, a necessidade de se equilibrarem os vários interesses. Confesso que desconheço às questões que se prendem com a investigação e não sou a melhor pessoa para julgar esse desempenho, o que sei é que a maior parte dos quadros da Procuradoria-geral da República são docentes na Faculdade de Bissau, e são pessoas serias e capazes, portanto provavelmente a questão da falta de meios é real. A investigação de um caso desta natureza não é apenas jurídica.

Ou seja, alguns desses problemas são de jurisdição militar ou de jurisdição civil? Portanto há muitos aspetos que são urgentes analisar, que é de que tipo de Justiça á aplicar.   Estou a trabalhar no apoio da equipa que está a preparar as propostas para a revisão constitucional, e realmente a Constituição da Guiné-Bissau precisa urgentemente de ser revista e melhorada, em alguns aspetos, porque há matérias em que ela é completamente lacunar, portanto as vezes as coisas não andam mais de pressa, por falta de meios, mas também porque em certas áreas, a lei é omissa, não se sabe exatamente qual é a lei aplicável em determinadas matérias.                           

O – E dessa comissão que está a falar, esta que está há fazer a revisão Constitucional, tendo em conta, que o próprio professor sublinha que existem algumas lacunas em termos do quadro jurídico, e sabe-se que dos 133 artigos da constituição atual vai-se passar para cerca de 233 artigos constitucionais, e a minha pergunta é: mediante estas alterações constitucionais, e com essa atualização, o professor acha que será suficiente para haver uma certa engrenagem da Justiça Guineense?
F.L.B – A sua pergunta é interessante, e tem aí uma ideia básica que é o Direito muda a sociedade? Não! O Direito por si só não muda a sociedade. O que muda as sociedades são as leis que criam um quadro de atuação em que as pessoas acreditam e usam-nas. Portanto aqui o problema também tem a ver com a mudança de mentalidade. Podemos ter muitas leis, e leis publicadas no boletim oficial da Guiné-Bissau, e enquanto as pessoas não souberem que elas existem e não perceberem o seu conteúdo, e não acreditarem que aquela é a melhor forma de resolverem os problemas, elas nunca serão aplicadas.   

Se nós olharmos estritamente para a Constituição da Guiné-Bissau, e como disse, com esses 133 artigos, é relativamente lacunar, porque há zonas, em que as questões deviam ser regulamentadas e não são. A Constituição da Guiné-Bissau tem defeitos, mas é bom chamar a atenção, que em relação aos assassinatos, conseguiu-se com aquela Constituição resolver os problemas nomeadamente quando foi, exercida a presidência da República interino, que governou, não excedeu aos seus poderes, conseguiu resolver os problemas que eram necessários e, fazer aquilo que era essencial ou seja; criar condições para que um novo presidente fosse eleito. Portanto em Março de 2009, infelizmente aconteceram aqueles terríveis assassinatos, mas em Setembro reelegeu-se um novo presidente, aplicando a Constituição que está em vigor.

Portanto a Constituição tem defeitos mas apesar de tudo, tem sido útil e operacional para resolver algumas questões. Agora a pergunta é: Pode-se fazer uma Constituição excelente, ela poderá trazer novas mudanças ou vai mudar tudo? Não, não vai mudar tudo, agora à Constituição ajuda e cria um quadro de referências e, se as pessoas se identificarem, nomeadamente os atores políticos, como cada um dos órgãos de soberania, todos reconhecerem, que aquela é a melhor forma de resolver os problemas, nós conseguimos ter um quadro de referência, que ajudará a atuação política. Portanto a mudança da Constituição vai ser muito útil, em relação a questões técnicas, que não são compreendidas a nível do atual debate político.

As questões do debate político são importantes, existe uma que levou por exemplo que a Constituição de 2001 não fosse promulgada e entrado em vigor. Tem a ver com o sistema de governo, isto é: o presidencialismo ou o semi-presidencialismo, qual é a melhor? Esta questão tem a ver, com uma questão realmente interessantíssima, mas é uma questão de natureza política. Portanto há questões técnicas e jurídicas que a Constituição tem que resolver e ajudaria imenso.

Dou-lhe um outro exemplo: Nesta conferência falou-se muito da questão da reestruturação da administração pública, isto é, não é possível estruturar a administração pública, enquanto as pessoas não reterem a ideia de que ela existe para servir os cidadãos, e as pessoas devem recorrer a ela. Portanto a administração pública deve ser um recurso que se pode recorrer enquanto cidadão e não como súbdito, ou seja uma pessoa que está submetida ao poder. E nesta matéria por exemplo é preciso que a Constituição consagre uma série de princípios constitucionais em relação a administração pública para que, depois de transformados em diploma, como está a acontecer neste momento, recentemente foi aprovado os Códigos de Procedimento Administrativo, que dá uma serie de direitos aos cidadãos administrados.   

Portanto, a Constituição precisa de ser mudado em diversas áreas, isso é um fato, mas é fundamental e necessário haver um Consenso político e uma compreensão de que a Constituição não resolve tudo e, é preciso que as pessoas acreditem que as regras são para serem cumpridas.

O – Professor Loureiro Bastos, uma das questões levantadas aqui também foi qual  o Modelo do procedimento da Justiça? Por exemplo o Bispo sul-africano Desmont Tutu, que presidiu a Comissão Verdade e Reconciliação naquele país diz que, “ Não há futuro sem Justiça”. E no caso da África do Sul essa Comissão acabou por preencher algumas lacunas da Justiça naquele país, e existem outros exemplos como o caso ugandês. No caso da Guiné, acredita que uma Comissão faria sentido e seria o melhor caminho, ou não chega?
F.L.B – A resposta não é fácil. É preciso ver se há ou não, uma situação de tensão na sociedade guineense, que tenha que ser resolvida através do julgamento de pessoas? Não sei até que ponto essa tensão tem afetado todo o processo guineense. Por exemplo, a sociedade guineense conseguiu encontrar um equilíbrio, entre várias maneiras de pensar, que leva a que por exemplo não haja, pelo menos de uma forma evidente conflito religioso, apesar de a população guineense ser de 30% islâmica, maioritariamente animista, e minoritariamente cristã, ter cerca de 30 etnias, em que 5 ou 6 são maioritários. Portanto, e a verdade é que as pessoas conseguiram encontrar um equilíbrio na vida entre si.

E neste momento não podemos dizer que há uma tensão nestas matérias na sociedade guineense. Não sei (repare que eu estou a dizer isto como estrangeiro) não é exatamente com uma compreensão, como se fosse um  guineense, o fato de estar a viver na Guiné-Bissau há 4 anos, não me da uma visão global das coisas, não sei se há uma tensão, onde seja preciso fazer julgamentos, para resolver as questões. Há uma questão que era muitíssimo importante resolver duma vez por todas, para acabar com estas incertezas sobre quem praticou alguns atos. É preciso resolve-los, mas repare, sem dúvida que o mandato desta conferencia não é isso. Neste momento a nossa missão é pôr as pessoas á dialogar, se depois for importante haver uma fase seguinte em que, seja necessário constituir-se uma Comissão com poderes, de natureza judicial, isso é outra questão.

Aí seria muito mais fácil a existência, de um Tribunal internacional, do que um Tribunal absolutamente interno. Por questões por exemplo de a sociedade guineense ser demasiadamente pequena de mais, para se conseguir depois criar uma determinada distância. Repare a sociedade sul-africana tem mais de 40 milhões de habitantes se não estou e erro, onde as pessoas não têm que se cruzar todos os dias e, é maioritariamente cristã, onde a palavra Perdão tem um outro sentido.   

A sociedade guineense como é, em que as pessoas acabam por se cruzar toda a hora, e são muito familiares uma das outras, não sei se funcionaria um tribunal desta natureza. Numa matéria tão sensível como esta, a minha opinião é que, se avançar essa ideia, será a meu ver necessário, uma intervenção internacional, para ajudar a resolver alguns problemas. Agora uma coisa é certa, quando houve os crimes de Março e Junho de 2009, a cidade de Bissau parou, mas no dia seguinte tudo tinha retomado o seu curso normal, agora pergunta-se, que tipo de Justiça deve ser aplicado no caso guineense (?) penso que essa é a questão fundamental.



Nota Ordidja

Depois desta entrevista, fiquei com aquela sensação de vazio, provocado de certeza pelo sentimento de um guineense que confirma algumas das dúvidas que afligem qualquer um de nós. Afinal, enquanto guineenses nós não temos uma “carta magna” adaptável a nossa realidade, porque as coisas claramente agravaram-se e vão se agravando para uma situação de impunidade endémica.

Os “copianços” que fizemos da Constituição portuguesa, não nos resolveram a questão da Justiça, ou do cancro da impunidade até então, porque como se confirma, foram leis criadas tendo em conta uma sociedade, uma cultura e fundamentalmente um costume. Portanto é urgentíssimo a revisão da nossa Constituição. Para se poder julgar muitos assassinatos que muitos até nunca ouviram falar. Um crime deve ser punido! Embora tenha lido “Crime e Castigo” não comento muitos temas que foram abordados pelo Professor Loureiro Bastos, nesta entrevista, e deixo isso para comentários dos juristas, pois a minha limitação de conhecimento na área jurídica remete-me para aquela ditadura do silêncio, obrigatório. Considero que não tenho arcaboiço técnico para opinar uma vírgula sequer sobre essas matérias.  

Ah, só para não esquecer, ontem votei e gostei dos resultados. A era socrástica chegou ao fim, e os auto-elogios, auto-promoções e auto-vanguardismo exacerbado já é passado. Mãos à obra, que são precisos ações e não palavras. Agir, agir e agir!  Game Over José Sócrates e seus comparsas.