Fonte: EI
Um
texto inédito do historiador e veterano de guerra russo Serguei Kolomnin faz um
relato do que verdadeiramente aconteceu na madrugada de 20 para 21 de Janeiro
de 1973. O documento, que tinha sido publicado apenas em russo, contém
testemunhos dos marinheiros que estavam a bordo do navio da marinha soviética
que resgatou Aristides Pereira e os restantes prisioneiros e entre as novidades
avançadas, refere, pela primeira vez, que Ana Maria Cabral estava também cativa
no barco guineense.
Amílcar Cabral foi morto no
dia 20 de Janeiro de 1973, em Conacri. Sabe-se que regressava de uma recepção
da embaixada da Polónia, cerca das 23h, acompanhado da mulher Ana Maria, quando
à porta de casa foi parado por um grupo chefiado por Inocêncio Kani. A ideia
original seria prender Cabral, mas na confusão que se seguiu o líder do PAIGC
acabou assassinado com um tiro na cabeça.
Um outro grupo chefiado por
Mamadu N’Djai invade a casa de Aristides Pereira, atam-no com um arame nas mãos
e nas pernas e metem-no num carro. Seguem-se ataques às casas de Vasco Cabral,
José Araújo e outros líderes do PAIGC. Todos os que foram capturados são
levados para o porto e enfiados nos porões das vedetas do PAIGC. Entretanto, as
autoridades de Conacri começam a agir. Na cidade é declarada a lei marcial, as
patrulhas militares saem à rua e alguns dos conspiradores são presos, outros
conseguem fugir e dirigem-se também para o porto.
Inocêncio Kani (que Cabral,
quando esteve na União Soviética, chegou a apelidar de “futuro almirante da
marinha da Guiné-Bissau”) toma a decisão de rumar para Bissau para, segundo
Kolomnin, entregar os prisioneiros às autoridades portuguesas.
Entretanto, o presidente da
Guiné-Conacri, Sékou Touré, ao saber da captura dos líderes do PAIGC e da sua
retirada do país pede auxílio ao embaixador soviético, A. Ratanov, com o
argumento que a Guiné não tinha meios para perseguir os conspiradores.
Um marinheiro do destroyer
soviético, Бывалый – em grafia latina Byvalyj (O Experiente), lembra que “à
meia-noite de dia 20, entrou de repente a bordo o comandante do Exército do
Povo de Conacri, Sangare Toumani, acompanhado por uma equipa de especialistas
militares soviéticos onde estavam o major-general Chicherin e o capitão
Zhuchkova. Em nome do presidente Touré e do embaixador soviético, pediram ao
comandante que se fizesse ao mar, capturasse os conspiradores e que aniquilasse
qualquer bolsa de resistência”.
O comandante do destroyer
soviético, o capitão Yuri Ilyin, via-se assim numa posição delicada. Era um
marinheiro experiente, um dos membros da tripulação recorda que “[Ilyin] era um
bom líder, exigente e justo. Os homens respeitavam-no muito”. O oficial estava
bem consciente que tomar parte em operações de combate com possível uso de
armas significava provocar um incidente internacional. Além disso, sem uma
ordem directa de Moscovo ou do seu comando em Severomorsk [base da frota russa
do norte, 25 quilómetros a norte de Murmansk], não tinha direito a largar
amarras.
Mas também sentia que não
tinha direito de ignorar um pedido do embaixador. Como reforça um outro
marinheiro da sua tripulação, “todos nós, na época, tínhamos sido criados na
tradição do internacionalismo”, e para Ilyin era a vida de amigos – dirigentes
do PAIGC – que estava ameaçada.
O comandante do
contratorpedeiro enviou então mensagens codificadas para Moscovo e para o seu
superior da Frota do Norte, onde informava o que tinha acontecido em Conacri e
transmitia a sua decisão de navegar em perseguição do grupo de conspiradores e
assassinos de Cabral. Ao mesmo tempo, Ilyin sabia que não obteria uma resposta
com a rapidez necessária – tanto em Moscovo como em Severomorsk era madrugada.
O capitão sabia que tinha o
tempo contado para conseguir capturar os conspiradores sem arriscar entrar em
águas territoriais de um país da NATO. Decidiu avançar mesmo sem respostas às
suas mensagens. Faz soar o alarme de combate, reúne no convés os outros
oficiais e conta-lhes o seu plano. Nenhum se opõe. Segundo Kolomnin a reacção
dos marinheiros soviéticos foi unânime “é preciso salvar os companheiros de
Cabral”. O único que levanta dúvidas é o representante do KGB na embaixada
soviética, que praticamente diz ao capitão Ilyin que está por sua conta e
risco. Apesar desta pressão, o capitão mantém a sua decisão.
Às 0h50 o destroyer faz-se
ao mar, em perseguição dos conspiradores. A bordo seguia também o comandante
Sangare Toumani com um pelotão de soldados guineenses. Ao fim de uma hora, chega a
primeira mensagem de Moscovo – “o oficial do contratorpedeiro só poderá usar as
armas com autorização do Chefe da Marinha” – mas, Ilyin já navegava preparado
para o combate.
Sabia que as três lanchas
rebeldes estavam armadas com metralhadoras gémeas de 25 mm, capazes de provocar
sérios danos no destroyer. O navio soviético navega
junto à costa, os russos conheciam as capacidades das tripulações dos
conspiradores e sabiam que de noite não se atreveriam a navegar ao largo, o
mais provável, pensavam, era que lançassem a âncora e esperassem pela luz do
dia.
Esta hipótese é confirmada.
Às 3h da madrugada, o tenente Maleshin detecta dois pontos fixos no radar, as
características coincidem com os barcos dos sequestradores. Ilyin força as
máquinas do destroyer, espera cair sobre o inimigo aos primeiros raios de sol.
É o que acontece. Às 5h da madrugada, o contratorpedeiro russo aparece de
repente, do meio da névoa da madrugada, em frente aos barcos rebeldes. Nestes,
a tripulação tenta levantar âncora e ligar os motores, mas param quando vêem as
torres da artilharia soviética apontadas para eles.
Os marinheiros do
contratorpedeiro manobram até ficarem ao lado dos barcos dos conspiradores. Os
soldados guineenses abordam-nos, desarmam e prendem os rebeldes. Toda a
operação é feita sem disparar um tiro. No entanto, depois de revistados os
porões, não se conseguem encontrar os líderes do PAIGC que tinham sido presos
pelos conspiradores. Estes só foram descobertos mais tarde, no terceiro barco,
cuja tripulação tinha perdido a orientação no escuro e encalhara nas
proximidades. Segundo testemunhos de marinheiros, Aristides Pereira, Ana Maria
Cabral, Vasco Cabral, José Araújo e outros membros da direcção do partido
estavam com um “aspecto horrível”, com marcas visíveis de tortura e
espancamento. Aristides Pereira era quem estava em pior estado e quase perdeu
as duas mãos por falta de fluxo sanguíneo.
No caminho de regresso, o
capitão Ilyin envia novos telegramas codificados para Moscovo com o relatório
completo da missão. Quando o destroyer chega a Conacri tem à espera um grupo de
especialistas soviéticos. Depois da entrega “oficial” dos barcos capturados e
dos rebeldes às autoridades guineenses o oficial russo é literalmente atacado
por todos os representantes da embaixada da URSS.
Todos querem saber
detalhes, principalmente se foram usadas armas. De acordo com as memórias de um
marinheiro do destroyer, um dos diplomatas estava tão nervoso que não se coibiu
de fazer o sinal da cruz enquanto murmurava “graças a Deus, não aconteceu
nada”.
Mas a história não acaba aqui. Apesar da atmosfera de euforia vivida, das
congratulações por parte da tripulação, havia um homem, um único homem, o
capitão Yuri Ilyin, que teria de ser responsabilizado pelas suas acções.
Em Moscovo, a sentença já
tinha sido dada: “ele [Ilyin] não pode ser perdoado”. Por ordem do Comandante
da Marinha soviética, Ilyin foi removido do seu posto por “arbitrariedade e
violação das instruções oficiais”.
Valeu-lhe então a posição
do major-general Chicherin, que enviou um novo telegrama ao Estado Maior onde
dizia que a acção do capitão Ilyin “merecia a mais viva estima do presidente
Sékou Touré e foi uma grande vitória sobre os mercenários do imperialismo.
Sékou Touré solicita a promoção do camarada Ilyin”.
No dia 22 de Janeiro de
1973, as acusações contra Ilyin foram retiradas. Algumas horas depois, chega um
telegrama assinado pelo almirante Yegorov, comandante da frota do norte, onde
declara a sua gratidão ao capitão Ilyin pela “acção audaciosa e decisiva num
serviço de combate no Atlântico”. O telegrama terminava com um “regressa.
Seremos piedosos”.
Depois de concluir o
serviço, o destroyer regressou à pátria. Kolomnin não sabe se algum dos tripulantes
foi condecorado, mas diz acreditar que não. O navio de guerra continuou a
navegar até ao final dos anos 80 do século XX. De seguida, o Byvalyj foi
desactivado e vendido como sucata para a China.