Intervenção
de Pedro Pires
Exmos.
Senhores Conferencistas e Moderadores, Senhoras e Senhores Participantes,
Amigas e Amigos,
Agradeço-vos
pela vossa prestimosa colaboração e pela vossa presença amiga.
Entendo,
estimadas Amigas e caros Amigos, que este é o tempo e a melhor ocasião para
falar no discurso direto sobre o 20 de Janeiro de 1973, mesmo correndo riscos
de incompreensão. Confesso-vos
que tenho um gozo muito especial em estar, aqui e agora. Sinto-me um afortunado
e um privilegiado! Na verdade, decorridos quarenta anos sobre a tragédia que
foi o assassinato de Amílcar Cabral e estar presente com saúde e ainda com
lucidez e vigor intelectual, numa grande Assembleia, como esta, em que nos
reunimos para evocar a memória daquela figura histórica, que era o nosso Líder
e nos inspira, ainda hoje, não deixa de ser um grande privilégio.
E
os meus velhos camaradas, aqui presentes? Como se sentem e o que estarão a
pensar? Certamente, partilhamos os mesmos sentimentos de orgulho e de dever
cumprido e rememoramos a longa caminhada feita. Afinal, pertencemos a uma
geração afortunada que o escritor angolano, Pepetela, nosso contemporâneo,
celebrou na sua obra “A Geração da Utopia”.
Nós
que lá nos encontrávamos, naquele momento, estamos certamente a remorar os
factos e a remoer as inquietações, os medos, as angústias, as dúvidas e os
sofrimentos que nos afligiam. Mas, a maior das inquietações seria seguramente:
como preservar os ganhos, então conseguidos, da luta de libertação? Ou, o que
fazer para não perder, sem a liderança de Cabral, a batalha na sua reta final,
quando estávamos convencidos de que com ele e sob a sua liderança podíamos
ganhar e que a vitória não estaria muito distante?
O
caminho escolhido e percorrido foi o caminho da superação das nossas
capacidades pessoais e das fraquezas íntimas; da união e da comunhão de
esforços; da repartição de responsabilidades e da assunção plena dos
compromissos morais que nos ligavam ao combate pela libertação nacional.
No
meu caso, quando a representação da Frente Sul chegou a Conakri, coube-me ficar
numa casa de acolhimento, algures em Conakri-II, durante mais de um dia. Fiquei
a aguardar a decisão superior, que jamais chegava, que me permitisse juntar aos
outros dirigentes que se encontravam hospedados num hotel no centro da cidade.
A minha chegada ao hotel e o meu encontro com os outros camaradas e os membros
das delegações estrangeiras foram extremamente emotivos. Porém, aquele
tratamento desigual não me permitiu ver, na véspera, o corpo de Cabral. Toda a
Direção do Partido presente na capital guineense participou nas cerimónias de
homenagem que decorreram no Palácio do Povo e no Estádio nacional. Tiveram
grandeza comparável às honras oficiais prestadas a um Chefe de Estado ou a um
herói nacional desaparecido.
O
enterro foi uma despedida dilacerante. Desaparecera a figura tutelar
insubstituível, na qual nos amparávamos. Pessoalmente, envolveu-me a sensação
de um enorme vazio. Revivi,
então, um outro momento aflitivo e desafiante, parecido com o que estávamos a
presenciar e que ocorrera, cerca de três anos antes: a operação militar
portuguesa (Mar Verde) de assalto à capital guineense, acompanhada da tentativa
falhada de golpe de Estado e de mudança do regime do Presidente Seco Turé, aliado
do PAIGC, cujos objetivos finais incluíam a neutralização da retaguarda de
apoio logístico, a destruição das estruturas do PAIGC e o assassinato de seus
dirigentes.
Apoderou-se
do meu espírito, naquele momento, as mesmas interrogações, as mesmas angústias
e as mesmas inquietações que antes me tinham atormentado. Como vencer esses
contratempos, todos? Seríamos capazes?
Aquela
cerimónia remeteu-me, ainda, a um outro momento penoso, quando das honras
idênticas prestadas ao Kwame N’krumah. E, foi de uma forma digna que Conacri se
despedira, com orgulho, dignidade e mágoa, de dois dos maiores combatentes pela
causa africana. Ambas as mortes tinham o seu lado trágico e imerecido.
As
instalações do nosso quartel-general tinham sido colocadas sob o controlo das
autoridades guineenses durante algum tempo. Passaram para o controlo da Direção
do PAIGC, dias depois, após as exéquias oficiais do nosso Líder. Voltamos à
nossa “casa” e assumimos por fim o controlo e a direção do nosso
quartel-general.
Foi
a partir daquela altura que pudemos encarar uns aos outros, olhos nos olhos, e
tentar perceber o que cada um pensava e o que cada um sentia. Pessoalmente,
interroguei-me sobre o comportamento de um ou de outro, pelo seu desalento,
pelo seu ar absorto e esquivo, longe dos acontecimentos, ou pela sua emoção
excessiva. Isso chamou a minha atenção.
A
pergunta que me interpelava insistentemente era: o que aconteceu? Mas, como foi
possível? Que tamanha traição! Até hoje sinto-me perante um comportamento
estúpido e um ato abominável e criminoso, sobretudo, destituído de sentido e de
qualquer perspectiva política.
Depois
de uma observação atenta daquela situação e de alguma reflexão, ficou-me a
perceção de que reinava uma excessiva emoção e desorientação no seio dos
dirigentes do Partido presentes e de que era urgente mudar aquele estado das
coisas, pois, era preciso recuperar os ânimos e a estabilidade emocional, repor
a Secretariado-Geral a funcionar e programar e impulsionar a retomada das
atividades políticas e militares nas Frentes.
Pressenti
riscos de inércia e de bloqueio. Era necessário dar sinal de que estávamos
vivos e decididos a prosseguir a luta. Dirigi-me ao Luís Cabral, ao Chico
Mendes e ao Nino Vieira, principais dirigentes presentes, e propus-lhes a
realização de uma reunião dos membros de CEL para a análise e avaliação da
situação e a preparação do prosseguimento das ações políticas e militares,
enfim, repor em marcha as estruturas políticas e militares do PAIGC.
Fez-se
a reunião da CEL proposta e decorreu num clima de muita sinceridade e
responsabilidade. Foi gravada para que pudesse ser apresentada, posteriormente,
a Aristides Pereira, que se encontrava em tratamento. Durante os debates foi
notório o incómodo do Osvaldo Vieira. Conclui a minha intervenção mais ou menos
da forma seguinte: “Nenhum de nós está em condições de substituir
individualmente o Amílcar e a única forma de o conseguir é cada um de nós
assumir uma quota-parte daquilo que lhe competia fazer. Assim, todos juntos,
vamos poder superar a sua ausência”. Dessa reunião do CEL saíram orientações
para as estruturas do Partido e o apelo ao reforço e intensificação da ação
militar e política contra o inimigo. E, por esta via, ficaram relançadas as
condições psicológicas para se romper com os riscos de inércia, com a indecisão
e com a lamentação, enfim, para se repor em marcha a máquina do PAIGC.
Ainda
em Conacri, aconteceram dois episódios casuais que me preveniram das minhas
novas responsabilidades. O primeiro foi um encontro com a Ana Maria Cabral, em
companhia do Vasco Cabral. A Ana Maria convidou-nos para esse encontro na sua
residência. Estou em crer que o objetivo era alertar-nos para os riscos
existentes e para as responsabilidades pessoais dos dois. Falou connosco,
aproximadamente, nos seguintes termos: “vocês os dois têm uma responsabilidade
grande nisso; espero que vão fazer tudo para que a nossa luta prossiga e com
sucesso”. Foi uma manifestação de confiança e, ao mesmo tempo, de preocupação
quanto ao futuro. A nossa resposta foi mais ou menos esta:“Vamos, sim!” Hoje,
estamos aqui e eu a Ana Maria. O Vasco já não está entre nós. Note-se que,
posteriormente, recebi apelos e manifestações semelhantes de vários outros
camaradas guineenses.
O
segundo encontro foi com o Afonso Gomes, que estava destacado na Marinha do
PAIGC, no porto de Conakri, onde os cabo-verdianos passaram por uma situação de
alto risco. Esse foi mais dramático e mais interpelante. O Afonso disse-me,
mais ou menos, o seguinte: “Vim dizer-te que estamos contigo. Vamos fazer o que
decidires: se decidires que a gente abandone o Partido, vamos abandonar; se
decidires para ficarmos, também vamos ficar”. Fiquei com a impressão de que
estava a transmitir-me uma mensagem coletiva dos cabo-verdianos que estavam na
Marinha. Respondi-lhe, da seguinte forma: “Afonso, vamos ficar. Não vamos
oferecer esse presente ao nosso inimigo. É isso mesmo que eles gostariam que
acontecesse!” O Afonso respondeu-me: “Entendido, vai ser assim!” E,
separamo-nos. A nossa amizade e confiança recíprocas ficaram consolidadas para
sempre.
Apercebi-me
na altura de que recaiam sobre mim mais responsabilidades e que havia confiança
e esperança na minha pessoa, que tinha que honrar. E, sobrecarregados por
maiores responsabilidades, eu e os meus camaradas, regressamos às Frentes de
Luta. Acredito que mais motivados a levar avante a luta, a cumprir o
compromisso com o nosso Líder então desaparecido tragicamente e, sobretudo,
determinados a não falhar. No meu caso, regressei à Frente Sul, em companhia do
Comandante Nino Vieira, com a missão do prosseguimento da preparação do cerco
de Guiledje. Os resultados finais da operação são conhecidos. Seria fastidioso
enumerá-los, aqui e neste momento.
Cabral
costumava alertar os seus camaradas, e não raras vezes, para os riscos e as
consequências nocivas que podiam resultar de erros e de comportamentos
inadequados. Dizia então: “A nossa luta no ponto em que se encontra só pode
destruída por nós próprios ou com a nossa colaboração, pois, o nosso inimigo já
não pode fazê-lo, mesmo que o queira.” Foi o que se verificou com o seu
assassinato, em que estivemos mesmo à beira do precipício. Por isso, sinto-me
na obrigação de enaltecer, para sempre, o contributo de todos aqueles e aquelas
que não permitiram que essa desgraça histórica se concretizasse. Porém, mesmo
hoje, não nos libertamos de riscos de regressão nos mais diversos domínios,
pois, existem e andam à espreita por todo lado. E é preciso que estejamos
atentos aos sinais destes riscos.
Retomando
o método de análise de Cabral, quando da homenagem a Kwame N’krumah, tentarei
apreender as lições negativas e positivas que se pode tirar da tragédia. Mesmo
assim, é difícil entender um ato tão vil quanto covarde e ignóbil, despido de
qualquer sentido de futuro e utilidade política para a Guiné. Deste ato não é
possível deduzir qualquer intenção de servir a luta e o país. Está-se perante
uma atitude de pura traição e de venda de consciência!
Num
rápido olhar sobre a pedagogia e a liderança posta em prática por Amílcar
Cabral, apercebe-se de que foi, no decurso do exercício da sua liderança da
luta que conduzia, que apreendeu melhor a grande complexidade da realidade
societária em que intervinha. Procurou agir no sentido da transformação dessa
realidade humana, o que conseguiu em grande medida. Porém, o processo de
transformação e de recriação revelou ser longo e bastante complicado. Enquanto
líder, foi um verdadeiro pedagogo e procedeu sempre no sentido de fazer crescer
com ele os seus colaboradores e companheiros, seja pelo exemplo, seja pela
formação, direta e indiretamente. Apelava os seus correligionários ao estudo, à
aprendizagem, à apropriação do pensamento crítico e de uma visão estratégica
quanto ao futuro da luta. Amílcar Cabral agia, enquanto líder, numa tripla
condição: de ator e dirigente político, de investigador e de interventor
social.
Todavia,
verificava-se, na prática, discrepâncias visíveis entre a ética postulada por
Cabral e o comportamento quotidiano de vários quadros dirigentes do PAIGC. Outrossim,
verificava-se um desnível acentuado de conhecimento, de consciência política e
de visão e, ainda, entre as capacidades e qualidades do líder máximo e as
capacidades e posturas de uma parte expressiva da Direção, salvo algumas
exceções. Faltava-lhes estatura e consciência política que correspondessem às
responsabilidades e às exigências decorrentes do estádio avançado de
desenvolvimento e dos sucessos da luta de libertação nacional.
Colocava-se,
então, a questão crucial da qualidade dos homens (da sua consciência política e
capacidade de liderança) e das capacidades de estes em entender as
características do momento histórico, com suas exigências e necessidades, que
não podiam resumir-se meramente às atividades militares. Esta ilação está
evidente nas críticas de Cabral dirigidas a comportamentos impróprios de muitos
dos seus companheiros. Ora, a situação impunha que estes compreendessem os
riscos, os medos, as canseiras e os efeitos perversos das pressões políticas e
das intensas campanhas propagandísticas do inimigo, enfim, dos possíveis
efeitos da guerra psicológica do inimigo sobre os comportamentos dos
combatentes e das populações das regiões libertadas.
Fraquezas
e falhas graves verificavam-se ao nível dos quadros intermédios , por
insuficiente consciência política e por falhas de rigor e omissões na
vigilância, no âmbito do exercício das suas respetivas funções.
Numa
luta política armada daquela natureza, de longa duração e portadora de muitos
sacrifícios e de renúncias pessoais, a consciência política é determinante.
Pois, intervêm vários fatores adversos, tais como, a saturação e o cansaço
físico e moral e podem surgir os riscos de perda de fé e de degenerescência
ideológica. Naquelas condições, impunha-se, reforçar a ação política e adotar como
forma de estar viver simultaneamente o presente e o futuro. Pois, são
precisamente as esperanças do futuro que permitem superar mais facilmente as
dificuldades do presente e sobrepor-se àqueles riscos de desencaminho. Em
resumo, isso exigia uma forte consciência política. Teria sido um dos dilemas
de difícil solução de muitos combatentes no seio do PAIGC. No campo
político-militar, após um longo e desgastante período de equilíbrio de forças,
com riscos evidentes de deterioração das situações internas, para ambos os
lados, tornava-se imperioso o rompimento daquela situação. Do lado do PAIGC,
estava em curso as diligências para a obtenção e o emprego dos foguetes
antiaéreos SAM, que vieram a ser determinantes no desfecho da guerra.
Do
lado das autoridades coloniais, estava em curso uma campanha militar
desesperada, lançada pelo seu Comando político-militar, na tentativa de
reverter a seu favor o estado de equilíbrio militar, portador de muitos riscos,
que vinha prevalecendo, apostando na recuperação das regiões libertadas, o que
estava a ser muito difícil, conjugada com uma intensa e diversificada campanha
sociopolítica demagógica, em torno da chamada Guiné Melhor. O recurso ao
assassinato do Líder do PAIGC insere-se na busca de saída para o grave dilema
em que vivia o poder colonial, precisamente, quando sentia que estava em vias
de perder a guerra, com consequências desastrosas para o futuro do império
colonial. Nada melhor do que decapitar o PAIGC, solução experimentada em outras
guerras coloniais. Reside aí a razão principal da decisão última de avançar com
a operação do assassinato de Amílcar Cabral pelos serviços secretos portugueses
e por seus homens-de-mão.
Em
Novembro de 1970, o Comando político-militar colonial tinha fracassado
vergonhosamente na sua tentativa desesperada e vã de provocar a mudança do
regime guineense, aliado do PAIGC, e de destruição das instalações de
retaguarda do Partido e de simultaneamente perpetrar o assassinato de seus
dirigentes. Tinha, igualmente, fracassado numa outra operação secreta, mais
perversa, de desmembramento da organização militar do PAIGC, a partir do seu
interior, através da infiltração e da corrupção de dirigentes das FARP na
Frente Norte. Os três majores dos serviços de informação militar colonial, que
conduziam a operação malograda de infiltração e de corrupção de responsáveis
militares daquela Frente, caíram numa cilada e foram abatidos. Esses desaires
conjugados com os riscos eminentes de um colapso militar e do afundamento do
império colonial, obrigaram o poder colonial a ir mais longe na sua miopia
política e na sua ação criminosa e recorreu decididamente ao assassinato do
Líder do PAIGC.
Vale
a pena lançar um rápido olhar sobre o lugar do crime. As estruturas em Conacri
revelavam ser o elo mais fraco do sistema do PAIGC. Encontravam-se aí
concentrados os serviços do Secretariado-Geral, a Escola Piloto, os Armazéns e
as Oficinas, bem como, a Prisão. No porto de Conacri, estavam ancoradas as
unidades da marinha de guerra e os barcos de transporte de mercadorias. Aquelas
instalações eram o ponto de passagem, para entrada e saída, de combatentes e
integravam as residências dos responsáveis e dos trabalhadores. O pessoal de
serviço não dispunha de rendimento certo, embora, tivesse garantido residência,
alimentação e vestuário (os seus elementos faziam requisições no SG e andavam
sempre à procura de como conseguir mais dinheiro). Também, encontrava-se
presente um certo número de feridos de guerra, entre os quais, muitos
inventavam subterfúgios para não voltarem às Frentes de luta. E, ainda, alguns
elementos afastados de funções por corrupção e por indícios colaboração com os
serviços secretos do inimigo. Foi essa amálgama humana, onde havia de tudo e
prevalecia gente de fraca cultura e de baixa preparação política, de que se
serviram os serviços secretos coloniais para a preparação e a execução do
crime.
Tem
ainda pertinência caracterizar os principais agentes do crime. Ora, tem sido
corrente, nas lutas contra o colonialismo, o recrutamento de ex-presos
políticos para traírem a causa libertadora e para realizarem trabalhos sujos
contra a sua própria organização e os objetivos políticos de libertação, ao
serviço do poder colonial (uma autêntica mentalidade de servidão e de
dependência). Neste aspeto, nada houve que já não já fizesse parte do arsenal
de métodos conspirativos colonialistas.
No caso, os ex-presos políticos e
agentes dos serviços secretos portugueses e utilizaram como argumento de
convencimento a cobertura falaciosa de heróis que muito teriam sofrido nas masmorras
coloniais. Foram seus coautores alguns responsáveis corruptos, castigados por
conivência com o inimigo, um ou outro dirigente militar, ferido de guerra, que
perdera confiança e fugia ao regresso às frentes e um ou outro dirigente
politicamente degenerado e ultrapassado pelo crescimento e pela dinâmica da
luta.
Outrossim, é preciso ter em mente que as guerras coloniais versus guerras
de libertação nacional apresentam várias facetas: a vertente militar, a
vertente política, ideológica e psicológica e a vertente subterrânea, de
conspiração, de subversão, de desinformação, de intoxicação ideológica, de
espionagem, de assassinatos e golpes sujos. Em princípio, todas as guerras são
igualmente violentas e cruéis, onde o humanismo é uma raridade, e cujo objetivo
fundamental é a busca da vitória, por todos os meios. É neste quadro de guerra,
da conspiração e dos métodos criminosos e repressivos coloniais que se deve
entender o recurso ao assassinato de Amílcar Cabral. Além disso, não há inimigo
altruísta e bondoso. Tentar apresentar isso como argumento de defesa ou de
justificação de qualquer atitude de boa-fé é uma desonestidade intelectual e
pura falácia. Um dos argumentos de intriga política dos conspiradores e
assassinos era que os cabo-verdianos teriam um tratamento privilegiado no seio
do PAIGC.
Este expediente foi ainda recentemente utilizado por certos homens da
pena ao serviço dos restos ideológicos do poder imperial, no intuito de
desresponsabilizar e branquear os crimes dos seus Chefes coloniais, convertidos
em heróis serôdios. Mas, as nossas referências são antitéticas. E nesta
matéria, não há lugar para confusão. Com efeito, no quadro da guerra
psicológica, de intoxicação, de diversão e de desinformação, o Comando
político-militar colonial montou uma insidiosa campanha contra os funcionários
e os cabo-verdianos residentes na Guiné, no intuito cínico e perverso de
confundir a opinião guineense, alijar responsabilidades, aliás, históricas, e
de tentar transferir para esses cabo-verdianos, logo, para Cabo Verde, as
responsabilidades, crimes e desmandos que foram e são da responsabilidade do
colonizador e do colonialismo português. Na mesma altura e no âmbito da
repressão colonial, muitos agricultores e pequenos empresários de origem
cabo-verdiana eram assassinados e vários funcionários eram presos e deportados,
por envolvimento com o PAIGC. Naquela fúria repressiva, várias personalidades
locais de origem cabo-verdiana foram presas, torturadas e deportadas para as
masmorras da PIDE em Portugal.
Ainda,
em relação aos combatentes cabo-verdianos, presentes no terreno da luta, o
comportamento da maioria foi sério e engajado. Sou um deles. E, para a nossa
afirmação social ou intelectual não precisávamos de quaisquer benefícios
materiais ou preferenciais. A nossa afirmação, prestígio e autoridade derivaram
tão-somente da nossa atitude, empenho e lealdade. Até, poderia ter-se
verificado uma maior afinidade ideológica e comportamental entre os
cabo-verdianos e Amílcar Cabral, o que não deixaria de ser um fator para uma
maior aproximação. Ressalto aqui um entendimento muito pessoal: os combatentes
cabo-verdianos portaram-se, nas Frentes da Guiné, como autênticos patriotas
internacionalistas.
No
que se refere à temática cultural, a pergunta é: porquê Amílcar Cabral deu tanta
atenção à cultura? Estou em crer que a razão reside no facto de ter verificado,
no decurso da sua ação de condução da luta, e a nível cultural, manifestações
de fatores que relevavam fraquezas e podiam constituir riscos e bloqueios
prejudiciais ao desenvolvimento do processo de libertação. Era necessário
compreender e interpretá-los.
Daí,
que se tenha referido a valores negativos e positivos da cultura. Entendo que
foi obrigado a fazer a reciclagem do seu pensamento materialista, perante a
força de certos fatores culturais, em choque com as suas próprias convicções.
De todo modo, era imprescindível estar-se atento às perversões e desvios que
pudessem ser provocados por entendimentos insuficientes de ordem cultural. Até
teria interesse confrontar essas manifestações de fraqueza com as resistências
à mudança e comportamentos que frequentemente criticava. Entendia ainda que a
luta de libertação era, ela mesma, portadora de violência cultural. Chamo ainda
atenção para a problemática da definição, nas teses de Cabral, de“o que é ou
quem é povo”. A necessidade de adequação ou de esclarecimento da abrangência
deste conceito teria surgido do facto de ter pensado que na confrontação com o
colonialismo se manifestariam dois blocos: o colonialismo, de um lado, e o povo
colonizado em peso, do outro lado.
Porém, verificou-se que uma parte do povo
colonizado estava conivente com o poder colonial. Donde, a necessidade de
circunscrever o conceito povo ao “povo em luta” e o conceito unidade, diferente
da unanimidade, à “unidade necessária”.
Cabral
propugnava e observava, enquanto princípios políticos e morais fundamentais, a
responsabilização individual e coletiva e a apropriação do pensamento crítico
próprio e autónomo (em relação ao pensamento dominante), ao serviço da elaboração
e do aperfeiçoamento de uma via libertadora específica.
As
escolhas políticas e posturas éticas de Amílcar Cabral simbolizam a coerência,
a abnegação, o empenho, a lealdade e o sacrifício. Significam o patriotismo e o
comprometimento, quer com as opções pessoais, quer com os interesses e
aspirações do seu povo. Na sua personalidade juntavam-se o otimismo histórico e
uma fé enorme na capacidade reabilitadora das pessoas. A sua ética é a do
compromisso voluntário e do dever indefetível para com a libertação, a
dignidade e o progresso nacional e africano. Não se satisfazia com o simples
discurso anunciador. Comprometia-se agindo em busca de resultados e de
soluções. Não se deixava cativar pelas aparências, antes, buscava chegar à
essência dos factos. Cultivava o realismo na elaboração e execução dos projetos
políticos e das estratégias militares. Outrossim, era dotado de uma enorme
intuição política e capacidade de antecipação dos acontecimentos. É esta
personalidade ímpar que hoje evocamos. E que nos interpela, igualmente.
Este
ato evocativo transporta, consigo, uma enorme carga interpelativa. Evocamos uma
figura histórica que respondeu ao chamamento do seu tempo e nos deixou um
precioso legado político e moral. É precisamente isto que nos vem questionar.
Hoje, somos interpelados e convocados a responder aos chamamentos dos tempos
presentes, porém, diferentes dos anteriores!
Presentemente,
a responsabilidade individual de cada um de nós aumenta, cada dia. Ora, não
basta alertar e criticar! Torna-se imperioso participar e
co-responsabilizar-se, na perspetiva da edificação de uma democracia
participativa de diálogo, alargada e cooperativa, e precisamente, quando está
evidente que as formas atuais de fazer política e de liderança mundial não
satisfazem as exigências nem respondem às necessidades e responsabilidades
contemporâneas.
É
ainda certo que, no continente africano, verificaram-se grandes progressos nos
últimos cinquenta anos, embora não tenha sido um processo linear. Este é um
momento que se pode considerar de viragem. Com efeito, abriram-se novas
oportunidades, que requerem um aproveitamento criterioso, em prol do
aprofundamento e do alargamento do processo de libertação e da autonomização
política do continente, nos diversos domínios de atividades e de intervenção.
Porém, manifestam-se igualmente fenómenos preocupantes, portadores de riscos
regressivos, bastante sérios, que reclamam que sejam enfrentados com
determinação, lucidez e coerência.
Neste
momento, as lideranças políticas da África Ocidental e do Norte, em particular,
são chamadas a encontrar caminhos e soluções duradouros para os complexos
desafios ideológicos e civilizacionais com que os respetivos países estão
confrontados. Do meu lado, não antevejo uma coabitação pacífica possível com as
práticas retrógradas e um desencontro tão grande de valores e de interpretação
dos direitos das pessoas. Antes, vislumbro um conflito grave que opõe a
modernidade (não confundir com a modernidade ocidental) ao passadismo
religioso, agressivo e refreador do progresso material, social, cultural e
científico, a que todos os africanos têm direito.
Para
o nosso bem comum, somos chamados a empenhar-nos para que vençam os valores
universais fundamentais e se afastem de vez o espectro de um eventual triunfo
da intolerância cultural, do fanatismo religioso e espírito de cruzada, de
sinal contrário, e do retrocesso político.
Não
é sensato nem judicioso que se esteja a contribuir para o bloqueio do avanço do
contente africano e, ainda, para cavar e aprofundar as nossas dependências
atuais. Esses desesperados de causa são chamados a mudar de rumo e a adotar uma
atitude realista e lúcida de compreensão do mundo contemporâneo. Para além dos
demais desafios, que são muitos, este me parece o mais complexo e portador de
enormes riscos em relação ao porvir africano de progresso a que aspiramos
construir.
Vivemos
uma conjuntura mundial marcada por enormes incertezas, o que nos convida à
reflexão e à análise retrospetiva da caminhada feita, dos nossos erros e
défices e dos nossos sucessos e ganhos; e projetar, sobre e a partir deles, um
renovado e esperançoso desígnio continental.
Outrossim,
entendo que, por exemplo, Cabo Verde tem sido e continuará sendo um desafio
para o seu povo e para as suas lideranças. Neste sentido, impõe-se às
lideranças cabo-verdianas evitar que haja uma avaliação enganadora dos avanços
conseguidos e trabalhar sempre com base numa visão prospetiva do futuro mais
provável, que espera o país, com as suas enormes oportunidades, bloqueios e
desafios. E, como propunha Cabral, a atitude apropriada é: “esperar o melhor e
preparar-se para o pior.”
Com
efeito, precisamos de uma visão partilhada do futuro em que, todos, nos
reconheçamos. Desta forma, estaríamos melhor apetrechados e mais disponíveis a
fecundar consensos e, logo, melhor apoiados a ser bem-sucedidos. Pois, o
desenvolvimento sustentável do país, sem riscos de regressão, que proclamamos,
constitui um longo e esforçado processo de crescimento económico e de geração e
acumulação de recursos. Só pode ser uma obra de várias gerações, que necessita
da garantia de continuidade. Assim, impõe-se às próximas gerações de liderança
ter a lucidez e a humildade de buscar, descobrir e realizar esta missão
histórica.
Aliás,
temos por onde nos inspirar: os nossos ganhos sucessivos, desde 1975; e,
ultimamente, os feitos inexcedíveis dos nossos basquetebolistas e futebolistas
(a quem desejo uma boa campanha na África do Sul), que representam a vitória da
nossa Nação, pequena, unida e solidária.
Finalmente,
felicito e incentivo a Comissão Organizadora do Fórum, encabeçada pela Dra.
Crispina Gomes, e todos aquelas e aqueles que se juntaram a ela para a
construção do sucesso deste evento. A todas e todos, o nosso muito obrigado!
Declaro
aberto o Fórum Amílcar Cabral 2013.
Praia, 18 de Janeiro
de 2013
Ordidjanotando
Agradeço ao irmão, amigo e camarada
Miguel de Barros, pelo envio desta belíssima intervenção do Comandante Pedro
Pires, no Fórum Amílcar Cabral 2013.