segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Conto de Natal

Preto-Velho
Por: Geraldo Martins


No Natal dos meus noventa anos, sentei-me feliz para a minha Última Ceia. A família toda estava reunida em casa. Os meus filhos e suas esposas, os meus netos e suas esposas e os meus bisnetos que corriam pela vasta sala de jantar e brincavam uns com os outros. Contei meus bisnetos. Eram dezassete. Uma sublime felicidade jorrou do meu coração. Que felicidade maior pode existir para um velho da minha idade do que ver à sua volta a alegria dos seus rebentos? 

A ceia copiosa, composta de bacalhau, grãos e arroz e regada com vinho tinto, fora preparada pela minha mulher de sempre – a bela Candinha – que, no alto dos seus oitenta anos, ainda conservava uma invulgar vitalidade e uma beleza púdica que nem o tempo nem as rugas tinham conseguido apagar. 

Quanto a mim, não esperava voltar a celebrar uma outra ceia. A minha artrite doía cada vez mais, as nádegas ardiam e já urinava as calças, pois a incontinência tornara-se crónica. Na semana anterior, voltei a passar por exames médicos e percebi que a minha saúde tinha piorado bastante. Com uma seriedade cínica, interpelei o meu médico, à saída do consultório:

– Dr. Santos, então, posso esperar estar ainda aqui para o ano? 
– Ó Sr. Teodoro, que pergunta é essa, o senhor ainda está fresco como uma alface... 

A sua voz, porém, não era convincente. Na minha idade, sei reconhecer trapaça na voz de um menino, mesmo quando esse menino é um médico e muito bom médico. Saí do consultório aturdido, mas voltei a mim rapidamente e lembrei-me de que devia dar graças a Deus por estar vivo numa idade em que a maioria dos mortais estão mortos.

A ceia estava animada. Os meus filhos conversavam entre si e os meus netos riam e lembravam as suas traquinices de infância. As mulheres trocavam segredos, apreciavam as roupas que traziam vestidas e as marcas dos sapatos e das bolsas. Eu, porém, reclinado na minha poltrona, num canto da sala, andava distraído na Reflexão Final sobre a minha existência. À beira da morte, a Reflexão Final não é sobre a morte mas sobre o amor. 

Eu amei a vida até ao limite. Amei as pessoas com diferentes amores. Amei os meus amigos. Amei os meus filhos como um bom pai. E amei a Candinha como a um pássaro com perfume hipnótico. Amei-a desde que nos conhecemos há quase sessenta anos. Amei-a como nunca amei nenhuma outra mulher. Confesso que tive os meus devaneios, é verdade, mas sempre longe dos olhos da Candinha. Também tive as minhas fantasias, algumas delas loucas. 

Realizei quase todas, mas uma delas nunca conseguir realizar – desflorar uma Virgem. Uma Virgem, não a de Setembro, mas uma donzela, aquela que nunca fora tocada por nenhum homem. Era uma cisma que nascera em mim não sei como e que me perseguira durante toda a vida. Eu estava prestes a partir sem preencher a lacuna do meu currículo. Mas enfim, cada um parte para o outro mundo com uma lacuna no currículo.

– Come Teodoro – disse-me a Candinha.

Dei um trago na taça do vinho monsaraz que segurava na mão. Ainda estava absolutamente impregnado nesta reflexão quando, subitamente, veio o guarda da casa chamar-me:

-- Senhor Teodoro, está alguém à porta a perguntar por si.

De pijama, levantei-me da poltrona com os ossos a resmungarem e fui à porta ver quem estava a perguntar por mim. Não tinha acabado de abrir a porta completamente e uma mão me puxou para fora soltando-me fora de casa. A mão que me puxava era de uma rapariga lindísssima que devia ter uns dezasseis ou dezassete anos e que usava uns sapatos de salto alto e vestia uma saia plissada curta e uma blusa decotada que deixava entrever os seios fartos. Firmemente, a rapariga agarrou-me e disse:

– Senhor Teodoro, vim buscar o senhor para o senhor me desflorar.

Olhei para ela incrédula. O coração começou a palpitar-me com a ténue possibilidade de que antes da minha morte ainda pudesse completar o meu currículo. 

– Não sei se posso fazer isso – resmunguei. Porque não arranja um jovem da sua idade?
– O sonho da minha vida é ser desflorada por um velhote manso.

Enquanto dizia estas palavras, a rapariga já me puxava pelo passeio e começámos a andar de mãos dadas pela rua, afastando-se da casa.

– Mas eu não posso ausentar-me por muito tempo, sou o anfitrião da ceia.
– Ó Senhor Teodoro, vem, vai ser rápido. Desflorar uma donzela não deve levar uma eternidade.

Eu tinha as minhas dúvidas. Com a minha Candinha, fazia anos que só nos olhavamos nos olhos na cama. Antes que eu pudesse responder, já estávamos a caminhar pelas ruas de Bissau. Olhei à volta meio envergonhado por estar a andar de mãos dadas com uma rapariga que podia ser minha neta. Surpreendentemente, as ruas habitualmente escuras estavam resplandecentes, com luzes por toda a parte. 

No entanto, começou a chuviscar, uma chuva estranha de Dezembro, e os carros circulavam pelas estradas e as pessoas andavam com pressa. Comecei a sentir frio e o meu pijama meio molhado colava-me ao corpo, provocando-me uma sensação desagradável.

– Para onde vamos? – perguntei.
– Sempre sonhei ser desflorada por um velhote. E numa igreja.
– Numa igreja?
– Não fales, a capela de Nossa Senhora de Fátima fica mesmo aqui ao lado. Vamos rápido.

A capela estava decorada com luzes e flores à entrada. De dentro, chegava os sons do canto coral da missa da meia noite. Contornámos a entrada principal e caminhámos até ao fundo. Já atrás da capela, atravessámos uma pequena porta e vimo-nos num compartimento estreito. Olhei à volta e vi algumas roupas bem dobradas em cima de cadeiras de madeira e pensei que devia ser o vestiário dos padres. Por instantes, pensei que ía ser alí, mas a rapariga agarrou-me na mão e puxou-me para dentro da igreja onde o Padre rezava a missa. Fomos até ao meio do grande salão, e então ela despiu-se toda, deitou-se e disse:

– Agora vem, Sr. Teodoro.

Os cânticos pararam e em toda a igreja começou a soar um coro de vozes:

- Te-o-do-ro, Te-o-do-ro.

Soltei meu pijama que estava colado à curvatura do meu corpo. Tirei a camisa do pijama. Pareceu-me que o coro aumentava de intensidade. Eu estava envergonhado, não propriamente do meu corpo, pois esse corresponde à minha idade, e ninguém se envergonha do corpo da sua idade. Mas será que eu conseguiria fazê-lo?

Te-o-do-ro, Te-o-do-ro – repetia-se o coro de vozes.

Tirei a camisola interior e pus ao lado. Olhei à volta e vi caras felizes a olharem para mim. Voltei a percorrer com os olhos aquela igreja, a ver se a minha Candinha não estaria alí assistindo à vergonha do seu marido. Não vi a Candinha. Tirei as calças e as minhas cuecas ficaram à mostra, grossas com o volume da fralda por dentro. Tinha quase chegado ao ponto de não retorno.

– Não, não posso fazer isto.

Fez-se um silêncio na capela. As pessoas começaram a olhar umas para as outras. Pareciam perplexas. Foi então que a voz austera do Padre quebrou o silêncio.

– Senhor Teodoro, se não o fizer, será atirado a esta fogueira.

Olhei para a frente e distingui o Padre Jacinto, o mesmo que me comungava aos domingos, e ao lado vi uma fogueira acesa junto do presépio. Olhei estupefacto para o Santo Padre, que costumava perdoar os pecados dos fiéis, e que agora estava a cometer um imperdoável pecado. Quando os nossos olhares se cruzaram, o Padre Jacinto franziu a testa e encolheu os ombros como que a dizer ‘não há nada a fazer’.

Entretanto, a donzela continuava deitada no chão frio da capela. Fiquei de pé junto dela, estático, a olhar para o vazio. O padre Jacinto deu ordens com um movimento de cabeça. Os dois sacristãos desceram lentamente as escadas do púlpito, vieram em minha direção e agarraram os meus braços conduzindo-me para a fogueira. Não resisti. A morte numa igreja deve ser a morte mais abençoada que há. Lançaram-me na fogueira com os pés em frente. Fechei os olhos. Os meus pés começaram a queimar-se. Sentia uma dor horrível. Depois as chamas subiram pelo corpo e chegaram ao meu ventre que escaldava, e já me preparava para receber as chamas na minha cabeça quando senti duas fortes pancadas na minha cara. Abri os olhos e vi a Candinha ao meu lado.

– O que foi? – perguntei.
– Eu é que pergunto. Estavas a contorcer-te e a murmurar. Se estás cansado eu levo-te para a cama. 

Percebi que tinha estado a sonhar, encostado na minha poltrona. Olhei à volta e vi os meus bisnetos a correrem. Voltei a contá-los. Dezassete. Sorri. 
Estendi a minha mão esquerda à Candinha que me agarrou docemente e me conduziu para a nossa cama de sessenta anos. Instantes depois, adormeci. 

Ayem !

Dedico este conto a todos os meus amigos com votos de um Feliz Natal e próspero Ano Novo. Que cheguem aos noventa com saúde (e com sonhos eróticos:-).

Dakar, 21 de Dezembro de 2013
GM


Ordidjanotando

Deixei esta mensagem ao Geraldo Martins há minutos: “Belíssimo. Ilustre Geraldo Martins, foi um conto de tirar o fôlego, fui embalado pelo sopro criativo do sonho do "Nhu Teodoro". Encaixou bem nesta quadra, que deve transpirar muita alegria, amor e paz. Feliz Natal e Festas Felizes para ti, mano-velho, e toda a tua família.”


Aproveito a oportunidade para desejar a todos os leitores da ORDIDJA, Festas Felizes... Santo Natal e Próspero Ano Novo, com muita SAÚDE, AMOR, ALEGRIA e PAZ