Luís Vicente
Por: Luís Vicente (Cuca)
A seguir à estabilização
política e social do País importa criar condições de modernização e capacitação
institucional do Estado por forma a garantir um desenvolvimento sustentável da
Nação.
Tal como a educação,
saúde, justiça, segurança, defesa, etc., também a descentralização e o poder
local são pilares da consolidação do projeto Nação, daí ser essencial avaliar o
processo de criação das autarquias locais no sentido de definir, com coerência
e responsabilidade, os centros de decisão e de poder público, conferindo dessa
forma maior integridade as políticas públicas desenvolvidas num espaço
territorial.
Como expoente máximo
de poder público de proximidade, a autarquia local é uma das formas mais nobres
de fazer política, ou seja, só com a consolidação das autarquias se atinge o
verdadeiro sentimento de pertença a um espaço e a uma comunidade – “sense Of
place and sense Of Community". Aliás, creio que com a descentralização de
poder e institucionalização das autarquias locais o Estado estará mais próximo
do cidadão e garantirá maior oferta de bens públicos.
Entendo que é
importante olhar para as autarquias locais como elementos estruturantes da
organização democrática do Estado, pessoas de direito público de base
territorial, dotadas de órgãos próprios, baseados no princípio da
representatividade democrática, tendo por objetivo a prossecução dos interesses
próprios das populações. Em bom rigor, falar do poder local e da municipalidade
é falar da importância que o mesmo reveste na articulação de um poder
intermédio que tem por função criar condições e respetivas competências nas
áreas de provisão de bens públicos, nomeadamente, a rede de saneamento básico e
de abastecimento de águas, requalificação urbana, planeamento e ordenamento do território,
acessibilidades, mobilidade territorial, educação, ensino básico, creche, jardim-de-infância,
centros de saúde, equipamentos culturais, ambiente, desporto, sendo que estas
funções podem e devem ser desenvolvidas por municípios e suas associações
(juntas de freguesias e associações municipais).
A existência de
autarquias locais, sendo estas pessoas coletivas de população e território
dotadas de órgãos representativos que visam a prossecução dos interesses
próprios, comuns e específicos das respetivas populações, pode em parte
resolver alguns conflitos de poder entre as componentes do Estado, administração
pública, governo e outros órgãos de soberania.
Certamente existe uma
responsabilidade direta dos autarcas eleitos pelos seus concidadãos no espaço
territorial que gerem e em que todos vivem e trabalham, daí que o mesmo deve
ser observado tendo em conta duas dimensões inquestionáveis de exercício do
poder: 1) Dimensão política: território, gentes e dinâmicas económicas e
sociais; 2) Dimensão de gestão: instituições, administração e sustentabilidade.
A conjugação destas
duas dimensões visa atingir os seguintes objetivos estratégicos: a) fortalecer
o Estado de direito e as suas instituições representativas; b) assegurar um
ambiente político e macroeconómico estável; c) promover o desenvolvimento
económico e social durável; d) aumentar o nível de desenvolvimento do capital humano
do País.
A propósito, talvez
falar diretamente da minha experiência como dirigente autárquico, gestor e responsável
pela área estratégica, projetos de desenvolvimento e financiamentos de uma autarquia
local, torna mais fácil situar a importância da minha tese e defesa na
implementação do poder local na Guiné-Bissau, sem querer com isso fazer
comparações, tomar partido ou influenciar seja o que for, mas, somente, partilhar
a experiência marcante sobre o que é poder local e como o mesmo, influencia as
nossas vidas.
Recuo até ao ano de 1998
altura em que fui convidado pelo então presidente do meu município para chefiar
o gabinete de projetos especiais do mesmo, desenvolver o plano estratégico do
concelho e acompanhar a execução do Quadro Comunitário de Apoio da União
Europeia, instrumento financeiro de apoio aos planos de desenvolvimento regional
dos Estado-membros.
Elaborou-se um
diagnóstico prospetivo e um quadro conceptual e metodológico, bem como a
definição de uma Visão Estratégica para o Município para os próximos 15 anos (documento
neste momento encontra-se de novo em atualização face aos objetivos que já foram
atingidos nestes últimos anos) que explanava claramente a posição do município
e do concelho naquela altura e onde pretendia estar no futuro.
Nessa altura as
prioridades definidas pelo município passavam essencialmente pelo investimento
em infraestruturas básicas de saneamento e reforço de abastecimento da água, redes
viárias e equipamentos sociais. Os índices eram muito baixos, tanto em termos
da taxa de cobertura de saneamento básico como também de abastecimento de
águas, concretamente 50% e 42% respetivamente, uma vez que só o centro da
cidade é que ainda estava servido e era necessário aumentar a taxa de cobertura
no meio rural.
Decorridos 15 anos, com
grande investimento em termos de capital financeiro e humano, infraestruturas
básicas e científicas, o município de Rio Maior tornou-se numa cidade moderna
com referência mundial nas áreas da Educação, Ensino, Investigação, Desporto,
empreendedorismo e centro empresarial de negócios de excelência.
Na verdade, infraestruturou-se
o concelho com a rede de saneamento básico e de abastecimento de águas, cujas
taxa de cobertura hoje correspondem cerca de 98% e 100% respetivamente; procedeu-se
à revisão do plano diretor municipal; defendeu-se um programa estratégico;
equipou-se o concelho com centros escolares de topo; revitalizou-se o espaço
industrial e criou-se uma área de localização empresarial; negociou-se o parque
eólico e rede de energia elétrica; investiu-se em acessibilidades e redes viárias;
dotou-se a cidade com bibliotecas, equipamentos sociais e desportivos, creches,
jardim-de-infância, centros de dia e lares de idosos, espaços públicos com
acessos à internet, escolas apetrechadas com rede informática e tecnológica, etc.
Tudo foi feito de
acordo com a legislação em vigor, com recursos financeiros do orçamento
municipal, através de arrecadação / cobrança de receitas, conforme a Lei das
Finanças Locais, Fundos Europeus, Fundos de Coesão e Contratos-Programa
celebrados com a administração central, transversal a todos os partidos do arco
da governação. A foto a seguinte evidencia apenas alguns equipamentos
construídos ao longo dos últimos 15 anos.
O índice de cobertura
dos equipamentos sociais públicos, nomeadamente escolas básicas integradas,
bibliotecas, lares de idosos, centros de saúde, escola profissional, escola superior,
instalações desportivas, etc., eram reduzidos nessa altura, mas hoje o concelho
está totalmente dotado de tais equipamentos e com condições acima da média
nacional e europeia.
Por conseguinte, quinze
anos depois, uma criança que nasce tem-se a certeza de uma creche,
jardim-de-infância, ciclo preparatório, ensino básico, secundário, escola
profissional e ensino superior. Hoje, um idoso pode optar, caso pretender estar
na companhia dos demais da sua idade, por um lar e um centro de dia, se
precisar de um médico e de um centro de saúde ou de um hospital tem à sua
disposição equipa médica, material e medicamentosa. Já não existem poços ou
“fontes”, nem filas enormes para captação da água nas zonais rurais, e os
acessos ao centro da cidade tornaram-se mais rápido e confortável, tanto para quem
desloca em negócios como para colocação dos seus produtos, mercadorias,
serviços, etc., atendendo ao grande investimento feito na rede viária concelhia
e supraconcelhia.
Tudo isso acontece
num concelho com pouco mais de 272 km2 e com cerca de 21 mil habitantes, onde o
maior recurso são as pessoas, o povo, os homens e mulheres que acreditaram numa
causa e procuraram cumpri-la com paixão, dedicação e trabalho.
Na verdade, a falta
de visão estratégica e o conceito espacial de alguns decisores públicos, políticos
em particular, tendo, sobretudo uma identificação pouco precisa dos objetivos
claros e coerentes, não conseguem lidar com os processos nem com os fatores
críticos de sucesso. Precisam, sobretudo, de encontrar um caminho para se
manterem no quadro da competitividade, salvaguardando o bem-estar dos seus
povos. Este é o espírito de missão que carateriza um político visionário com
capacidade de decisão e determinação, capaz de combinar recursos técnicos,
humanos, financeiros, materiais e gestão da informação, colocados à sua
disposição e projetar uma visão clara sobre a dinâmica da construção de uma
cidade e/ou de um País.
Mas, voltando à
questão da Guiné-Bissau e a necessidade de implementação dos municípios e suas
associações, gostaria de reforçar a importância que deverá ser dada a este assunto
tendo em conta o mecanismo de ajustamento de poderes, atribuição de
competências e responsabilidade no quadro de um normativo específico.
Assim, talvez reportando
alguns cenários de enquadramento, poderia avançar que, invariavelmente, para se
pensar numa possibilidade destas seria bastante importante aflorar alguns
pontos que devem ser observados na implementação das autarquias locais,
nomeadamente, o Enquadramento Constitucional das Autarquias Locais, a Lei do Financiamento
Local e o Quadro de Competências e Regime Jurídico de Funcionamento dos órgãos
dos municípios.
No que concerne à Lei
do Financiamento Local, por exemplo, a organização político-administrativa do
Estado segundo diferentes níveis de administração poderia prever, em primeiro
lugar, uma tão clara quanto possível identificação das competências de cada um
deles. A definição dessas funções servirá, posteriormente, para estimar os
encargos decorrentes do seu desempenho e decidir quanto às modalidades do seu
financiamento. A viabilização, de facto, de qualquer processo de distribuição
de competências pelas autarquias locais exige que se lhes atribuam as fontes de
financiamento que, de modo estável e previsível, lhes permitam executar as
funções que lhes forem cometidas, impliquem elas despesas correntes ou de
investimento (também designado por despesas de capital).
Em boa verdade, as
autarquias locais têm como principais fontes de receita a participação nos
impostos, às taxas sobre bens e serviços e as subvenções/subsídios/comparticipações.
Por exemplo, a matéria relativa aos impostos abrange, em abstrato, o direito a
legislar sobre eles, o direito a receber as correspondentes receitas e, por
fim, o direito a administrar o processo fiscal, incluindo o domínio da
fiscalização. As soluções a adotar poderiam distribuir estas competências por
diferentes níveis de administração, concentrá-las num só, ou promover a
cooperação e a coordenação entre eles, pelo menos nalguns aspetos.
Segundo esta ordem de
ideias, os impostos geradores de receitas para as autarquias locais podem-se
sistematizar em diversos tipos: taxas, impostos próprios, derramas,
participações nas receitas fiscais do Estado, subvenções, venda de bens
correntes e de investimentos. Todavia, a unidade do sistema fiscal justifica
com frequência que a capacidade originária para legislar nesta matéria resida
no Estado, o qual, por essa via, fixará os limites dentro dos quais se pode
desenvolver a autonomia local.
No entanto, para além
da abordagem destes dois campos de atuação como sendo um processo de integração
local, é importante também observar os domínios de atuação das autarquias
locais tendo em conta a sua proximidade ao cidadão. Assim, é de referir que a
Constituição da República Guineense carateriza as autarquias locais como
pessoas coletivas territoriais, de órgãos representativos, que visam a
prossecução de interesses próprios das comunidades locais, não se subtraindo à
estrutura unitária do Estado (n.º 2 do art.º 105º CR).
Entendo, salvo melhor
opinião, que é importante considerar, durante esta legislatura que se inicia a
discussão em torno da criação da Lei-quadro das autarquias locais que tenha em conta
os poderes e a composição, a competência e o funcionamento dos seus órgãos,
prevendo o exercício de atribuições nos seguintes domínios:
a) Cultura e património
histórico;
b)
Apoios às atividades
produtivas;
c)
Educação e formação
profissional;
d)
Juventude, desporto e tempos
livres;
e)
Desenvolvimento económico e
social;
f)
Turismo e desenvolvimento
sustentável;
g)
Planeamento e ordenamento do
território;
h)
Equipamento social, redes e
vias de comunicação;
i)
Rede de abastecimento de
água e saneamento básico;
j)
Ambiente, conservação da natureza
e recursos hídricos.
Dessa forma, o poder
local possibilitaria a milhares de guineenses a participação na vida cívica
pelo facto de ser um poder de proximidade e não permitir que a democracia seja
um privilégio de uma minoria e/ou de uma classe sedeada em Bissau. Assim é que, em parceria, os três
agentes pilares fundamentais do desenvolvimento sustentável de uma região (universidades,
empresas e sector público e Institucional) ganham a eficácia necessária com a imprescindível
criação das autarquias locais.
Por último, recomendo
que se criem condições para uma revisão constitucional que consubstancia a
criação: 1) Lei-quadro das Autarquias Locais; 2) Lei Eleitoral das Autarquias
Locais; 3) Lei das Finanças Locais; 4) Quadro de Competências e Regime Jurídico
de Funcionamento dos órgãos dos Municípios;
Ainda, sugiro que se
avance com o projeto-piloto de implementação faseada das autarquias locais em
grandes regiões e a sua consolidação em duas legislaturas; Estabelecer o quadro
de transferência de atribuições e competências para as autarquias locais; Proceder
a elaboração dos estatutos das entidades intermunicipais e o regime jurídico do
associativismo autárquico; Estabelecer o quadro de competências, assim como o
regime jurídico de funcionamento dos órgãos dos municípios e das freguesias.
Chamo atenção para o
facto de este pequeno ensaio poder ser materializado com mais contributos, tais
como a proposta de implementação de um senado ou mini camara de representantes
constituído por “Sobas, Régulos, Anciões ou Sábios” de todas as etnias, para
discussões de grandes temas que têm a ver com as componentes “tradição, usos e
costumes” do País, como condição “sine qua non” deste projeto estruturante. Seria
muito importante ter isso em conta quando da discussão do processo de criação e
implementação do poder local no País e, julgo até, que
este é momento oportuno, no quadro da parceria de incidência parlamentar que
presentemente está a ser discutida entre os dois grandes partidos.
Lisboa, 22-05-2014.