quarta-feira, 17 de abril de 2013

OS FUNDADORES DO CRIOULO OU AMI KI BU MAMÉ …

Fernando Teixeira

Anteontem foi realizado o último debate sobre o futuro do Crioulo nesta semana que amanhã termina, denominada de a Primeira Semana da CRIOLOFONIA /Purmeru Sumana di kriolofunia. Hoje foi lançado o último livro desta semana em que se discute o Crioulo/Criol em todas as suas vertentes: O falado e o escrito, as suas diferenças e desenvolvimento. Os Crioulos com alguma identidade similar ao nosso como o caso do Crioulo de Cabo-Verde e o Papiamento do Coração. Os oitenta Crioulos existentes no mundo.

Os diferentes Crioulos dentro do nosso território nacional (Geba, Farim, Cacheu, Bissau, Bolama…). O nosso Crioulo mas que se fala fora do nosso território nacional como o de Ziguinchor, de Portugal (principalmente na periferia de Lisboa, casos de Damaia, Amadora, Vale de Amoreira) por exemplo, foram aventados como hipótese de estudo e seguimento pelas novas contribuições que vão incorporando ao léxico atual; uma realidade viva e dinâmica de milhares de falantes de crioulo que nasceram fora do território nacional (e nem a conhecem) mas é a sua língua materna e de comunicação.

O processo de desenvolvimento e expansão do Crioulo na nossa sociedade, dentro das tribos, nas tabankas distantes, no ensino e além-fronteiras. A metodologia do ensino e da investigação. A gramática crioula, a pedagogia, literatura crioula; a (hoje) importante vertente poética crioula (um dos pilares de sustentação da escrita crioula a nosso ver). As convenções existentes (a de 1987 e a de 1999). Os limites da oralidade e da escrita; B. Pinto Bull; Paulo Freire; Luigi Scantamburlo e outros, pioneiros da Criolofonia.

A necessidade histórica (?) de estabelecer um Crioulo padrão e a partir deste conhecer e combater os desvios. A necessidade de proteger o Crioulo das “contribuições” nefastas vindos dos falantes dos países limítrofes.

Resumindo, tudo, numa semana rica e que se recomenda, pois foram três debates específicos e profundos, baseados em estudos sérios e competentes intitulados “Génese e Formação do Crioulo”, “Como Normalizar o Crioulo”, “Ensino e Desenvolvimento em contexto Multilingue”;

Lançamento de quatro livros crioulos (Tanamu Fenhi na República de Kafumbam de João José “Huco” Monteiro,Polom Malgós & Finham, de Emílio Tavares Lima, e Mufunessa Padi Sabura de Adul Carrimo Só);

Exibição de quatro filmes em crioulo (Nha Fala de Flora Gomes, Clara de Sabura de José Lopes, Bissau D`Isabel de Sana Na`Hada);

Nada ficou de fora, num debate aberto a uma plateia interessada e habilitada. Tudo foi abordado mesmo que de forma muito sintética dada as circunstâncias. Semântica, linguagem, língua, estilo, gramatica, verbos, fonética, provérbios, ditos, linguagistas, linguista, poetas do Crioulo, romancistas de Crioulo, crioulíssimos entendimentos e crioulíssimos discordâncias, crioulíssimas propostas para a continuidade da língua e do evento.

Interessantes intervenções e contribuições de varias pessoas, simples leigos, falantes apenas do crioulo, mas que quiseram dar a sua contribuição, mesmo que simples, mesmo que apenas baseado no amor e preocupação que sentem com relação sua língua materna ou não; Tudo discutido com sabedoria, bom senso, cientificidade; até com alguma ingenuidade (porque não dize-lo?) de participantes fortuitos, mas que tudo somado, proporcionou um debate profícuo e interessante.

Todo esse calidoscópio de falas, filmes, livros, danças, teatro e muito mais, permitiram transformar este Abril no més do Crioulo. E o Centro Cultural Franco Bissau Guineense na Catedral Nacional do Crioulo e assim provar também que mesmo na mais escura noite é possível pensar e criar, se houver vontade.

II
A palavra de ordem foi valorizar o que é nosso, valorizar o crioulo e centra-lo no seu devido lugar no processo de desenvolvimento socioeconómico e cultural da nação. Esta mensagem com todas as suas implicações culturais, sociológicas, pedagógicas, linguísticas, nacionalistas (que sei eu?) foi-nos deixada por uma plêiade de investigadores, professores e técnicos que merecem o nosso respeito e carrinho pelo trabalho realizado e que vão realizando silenciosamente ao longo dos anos em prol do nosso Crioulo. São eles, por ordem alfabética: Adul Carrimo Só, Adriano Ferreira (Atchutchi), António Soares (Tony Tcheka), Conduto de Pina, Domingos Gomes, Adulai Sila, Emílio Tavares Lima, Flora Gomes, Guillaume Thieriot, Ibraimo Djaló, Incanha Ntumbo, Jorge Lopes Soares, João José “Huco” Monteiro, Miguel de Barros, Mário Conté (Maiuca) Nelson Medina, Odete Semedo, Zaida Lopes Pereira, …, …, ….
Não conheço todos, infelizmente, mas estes nomes que escrevi de certa forma exemplificam este desiderato. E mais não direi, mesmo que cada mereça, particularmente, um enaltecimento particular.

Deles não tecerei encómios e não produzirei elogios e para explicar esta minha conduta, sem licença, ouso usar as conhecidas palavras de Erasmo de Rotterdam“(...) De resto, esta minha conduta me parece muito mais modesta do que a que costuma ter a maior parte dos grandes e dos sábios do mundo. É que estes, calcando o pudor aos pés, subornam qualquer panegirista adulador, ou um poetastro tagarela, que, à custa do ouro, recita os seus elogios, que não passam, afinal, de uma rede de mentiras. E, enquanto o modestíssimo homem fica a escutá-lo, o adulador ostenta penas de pavão, levanta a crista, modula uma voz de timbre descarado comparando aos deuses o homenzinho de nada, apresentando-o como modelo absoluto de todas as virtudes, muito embora saiba estar ele muito longe disso, enfeitando com penas não suas a desprezível gralha, esforçando-se por alvejar as peles da Etiópia, e, finalmente, fazendo de uma mosca um elefante. (…)
  
Estas palavras me lembram a nossa pobre e actual realidade, mas que sei eu? Erasmo sim; na verdade ler Erasmo é como ir ao Ceu e voltar (se no Ceu não houver uma biblioteca onde se possa ler Erasmo e outros como ele, valerá a pena ir ao Ceu? Não estarei indo a missa todos os Domingos para nada? Não devia desejar a imortalidade aqui na Terra para ser feliz para sempre entre os homens); mas o Erasmo que me perdoe, pois abro uma excepção (em tudo tem que haver uma excepção, não é verdade?) para deste nobre conjunto de Guineenses ressaltar um em particular:

Sr. Guillaume Thieriot, pelo seu papel omnipresente em prol da Cultura Guineense nestes últimos anos. Nas artes plásticas, na música, cinema e agora em prol da nossa língua nacional de comunicação, o seu legado é enorme e será certamente lembrado por muitos bons anos. Uma pessoa que por acaso do destino reúne num só individuo culturas diferentes como o Francês, o Brasileiro, o Guineense e seguramente outros que não sei. Cosmopolita por excelência, conhecedor da realidade Guineense, falante do Crioulo, amante da cultura Guineense, proporcionou-nos a todos durante estes últimos tempos um verdadeiro reencontro com a nossa própria cultura. Dele pode-se dizer sem risco de errar que “se mais não fez, mais não pôde”. Mas que sou eu para falar dele? Que o digam os nossos músicos, cineastas, pintores, poetas, escritores, dançarinos, actores teatrais e de cinema, agradecidos, com que falo todos os dias nesse espaço de cultura Guineense, Francesa e Africana por excelência em que ele transformou o Centro Cultural Franco Bissau Guineense. Bem-haja este filho da nossa terra, conhecido entre nós por Gui de Bolama (Gui Di`Blama).

III
Como já disse o que tinha a dizer sobre aquilo que se passou, não poderia deixar de aproveitar a boleia (não é, Odete Semedo?) e dizer duas palavas em jeito de modesta contribuição para este “debate” da Crioulofonia que agora de novo se inicia, na esteira de outros, que no passado tiveram lugar mas não tiveram a continuidade infelizmente. A nossa contribuição não será seguramente sobre este debate de hoje que será conduzido no futuro por técnicos conhecedores da matéria, mas sobre a necessidade de um debate novo sobre os fundamentos socio culturais do crioulo na formação da nossa identidade nacional.

Um debate complementar a este ou não, mas que deve definir a responsabilidade politica da língua, o seu papel na formação identitária deste povo. Precisamos primeiro dizer que “aceitamos” e entendemos - mais com intuição do que com provas “cientificas” – que a língua crioula está e estará sempre em permanente desenvolvimento, num movimente perpetuo; e como outras línguas - que já “cresceram” e chegaram a idade adulta (e já pouco desenvolvem) - o crioulo só atingirá a maioridade quando esgotar todas as suas fontes (coisa quase impossível pois cada dia surgem mais) e riachos que desaguam no grande rio que será um dia o tal Crioulo padrão que procuramos. Pois o crioulo é ainda uma empresa comum; é criado todos os dias por todos nós, todas as tribos, todas as pessoas, num processo silencioso que ninguém consegue conhecer totalmente e muito menos controlar ou condicionar. Só atingirá a maturidade quando todas as línguas que lhe servem de base étnica e concorrem para a sua riqueza, esgotarem os aportes que podem trazer; e também a diáspora e territórios que interagem connosco na fala e utilização do crioulo. Cada dia surgem expressões novas que são incorporadas e raramente desaparecem outras tantas, pois o corpo da língua ainda é magro, ainda vai na adolescência.

Mas nosso entendimento sobre a problemática do Crioulo procura ser sobre outras dimensões que não estritamente “linguísticas” na sua variação multifacetada. Pois se hoje é aceite pacificamente ou não que a língua não faz parte da superstrutura da sociedade por vários factores que aqui não trataremos - basicamente porque ela permanece igual independentemente das mudanças sociais, revoluções, etc., operadas nas sociedades -, no nosso caso, no processo de formação da nação em que ainda estamos nos primórdios, ela é um elemento da superstrutura.

Se não vejamos rapidamente: A infra-estrutura, simplificadamente, é o regime económico da sociedade . A super-estrutura são as opiniões políticas, jurídicas, religiosas, artísticas, filosóficas da sociedade e, claro, as instituições políticas, jurídicas e outras que correspondem a esse regime económico. Portanto a língua teoricamente não depende de regimes políticos ou económicos, em qualquer regime ela é a mesma. O francês sempre foi basicamente o mesmo no feudalismo, na monarquia, durante a revolução e o império e hoje na república. Isso é que leva a conclusão anterior sobre a sua não pertença a super-estrutura.  Mas o crioulo diferentemente das línguas já estudadas, como disse, pertence a infra-estrutura enquanto formador e aglutinador de toda a nossa  super-estrutura:  as opiniões políticas, jurídicas, religiosas, artísticas, filosóficas da nossa sociedade em formação e , claro, as nossa instituições políticas, jurídicas e outras ainda em gestação ou embrionárias.

Esta minha asserção advém-me da certeza que tenho de que o Crioulo é a nossa própria cultura, e não apenas um veículo de disseminação desta. Vou buscar esta dimensão na simples mas profunda afirmação “nossa língua é nossa pátria” ou de outra forma, pranteada, na compreensão de que a “minha pátria é a minha língua”, dita por outros mais sages que nós. Entendendo assim que se a alma de um povo é a sua língua, a sua cultura (de que a língua é apenas parte) é o próprio povo em si.
Assim entendemos por fim, sem surpresas, mas com a simplicidade de uma certeza evidente que a Guinendade e o Crioulo são faces da mesma moeda, pois uma só existe na existência do outro. A Guinendade só pode existir em Crioulo e dentro de uma mundivisão crioula. De outra forma a palavra Guineense - sem o substrato cultural e social dado pela língua crioula - ainda é hoje, como há quatrocentos anos atrás, apenas um topónimo, se não de um lugar, mas de um indivíduo que nasceu num triângulo serpenteado por rios, algures na África Ocidental, chamado Guiné por decisão de um desconhecido… e esse individuo ainda anda a procura da sua identidade última…

IV
Entendemos que podemos ensinar o crioulo a toda a gente, estrangeiros inclusive (muitos falam o crioulo tão bem ou melhor que nós; e criam gramaticas de crioulo inclusive), para ser um instrumento de comunicação por excelência entre as diferentes tribos e para a sua utilização como instrumento de ensino. Mas o crioulo para nós é muito mais importante do que apenas isso; O “falar” crioulo pressupõe a priori o “pensar” crioulo, que diferente de pensar “em crioulo” assenta numa aculturação crioula, um sentir “crioulo” comum.  Sabendo que a língua nunca é passiva, nunca é apenas um instrumento de comunicação e interacção; cada povo é aquilo que é porque aa sua língua é àquela que usa. Mas a língua de cada povo é assim e não assado porque quem o fala é aquele povo e não o outro. Esta dinâmica é muito mais profunda do que estas minhas desajeitadas palavras. Por isso uso as de Mikhail Bakhtine:  “As normas linguísticas, a sistemática da língua são análogas às normas morais, jurídicas, estéticas no sentido de que estas normas não existem senão em função da consciência dos indivíduos que compartilham uma sociedade governada por elas. Língua não é um fenómeno inteiramente objectivo (como as leis físicas), nem inteiramente subjectivo (como as impressões digitais). A liberdade individual, na linguagem, depende sempre da razão constantemente cambiável entre a palavra interior (que é para ele um pensamento sempre consciente) e a palavra exterior. A sociedade investe constantemente o indivíduo por intermédio de signos e da linguagem.”  
Por isso já afirmamos várias vezes que não é – necessariamente - uma junção consanguínea de tribos que forma um povo; nem o facto de estas viverem lado a lado num mesmo território herdados de uma dominação anterior, seja qual ela tiver sido. Pois pode bem passar sem a consanguinidade, mas nunca sem a raiz do seu existir ou o que o faz ser “esse determinado povo” e não um bando de desgarrados de indivíduos. A cultura comum pode substituir a consanguinidade mas o contrário não é valido. Sangue não faz o povo, apenas a cultura, a língua… Um povo pode até perder o seu território ancestral numa guerra ou sendo expulso dela por invasores estrangeiros, mas se conseguir conservar a sua cultura e língua e nunca deixara de ser um povo, “esse povo”.

Baseado nestes e outros pressupostos, dizemos que bem ou mal, neste momento, temos um núcleo (falante do Crioulo) formado com o sangue, costumes e cultura de todas as etnias do país: é esse o nosso “primeiro círculo”; e a partir da qual podemos expandir a interacção cultural e outras que virão através desta. É esse núcleo (não existe outro) que servirá de base de interacção sanguínea das diferentes tribos do país, independentemente de como isso se processará ou não. E não tenham dúvidas quanto a isso, pois todos os povos atuais, europeus, asiáticos ou árabes, já foram um conjunto de diferentes tribos em algum momento da sua caminhada histórica; e cada um veio a tornar-se um povo a sua maneira; uns pela submissão e integração de outras tribos, outros pela simbiose e por outros processos de endogenia ou endogamia.
  
Se uma união entre um papel (que tem como a língua materna o dialecto papel) e um mandinga (que tem como a língua materna o dialecto mandinga) só é possível, através da língua crioula (que ambos dominam), então temos no Crioulo não apenas o veículo da interação social, mas o “sítio”, o lugar sociológico do encontro” que permite realizar a primeira integração de costumes, de amizade e de amor, que futuramente levará a aspetos mais profundos como a integração social, tribal, religiosa e sanguínea. O primeiro círculo, onde vivem, produzem, socializam e realizam-se como seres humanos todas aas diferentes etnias. Portanto o crioulo como elemento primordial da superstrutura da nação. Assim falaremos do primeiro núcleo de integração para a cultura comum.
Pois se cada elemento dessa união, atras referida, continua-se a viver na sua tabanca, no meio da sua tribo, isolado, não haveria a interação nem integração, nem a primeira pedra que suportará o edifício Nação que pretendemos construir.

Aceitamos que a família é o primeiro núcleo da sociedade; que toda a organização social começa por esta célula; mas não é apenas o simples facto de falarem a mesma língua, o Crioulo, que faz dois elementos de tribos diferentes do nosso país se unirem na formação de uma família. Mas não deixa de ser importante que depois da integração sanguínea os filhos nascidos dessas uniões são já Guineenses que diferentes dos seus pais, que são ainda membros e filhos das suas tribos de origem, que eles em boa verdade já não são membros de nenhuma tribo em particular; e as suas junções futuras, com membros de terceiras tribos, levarão paulatinamente a criação do homem guineense do futuro que como língua terá cada vez mais apenas o Crioulo; até ao dia que então teremos na língua crioula o nosso veículo da integração nacional no seu todo.

V
Num outro texto que não abordava este especifico tema, mas a problemática da formação de uma nação futura, afirmamos que “não nos interessa nem a identidade crioula nem a tribal. Apenas a Nacional, como síntese das outras duas que deveriam desaparecer gradualmente.”, tentando demostrar que existe uma identidade crioula e uma tribal que numa simbiose dariam lugar a identidade nacional, a identidade crioula. Este é outro tema, outro campo de batalha, mas está de certa maneira ligado a este, por isso dissemos anteriormente que a “Guinendade só pode existir em Crioulo e dentro de uma mundivisão crioula”.
Não podemos ter um país fruto ou consequência de unidade tribal aleatória de fulas com manjacos ou de papéis com beafadas ou mandingas com Felupes. Existe um núcleo civilizacional, um cimento nacional feito de habitantes de Bissau, Bolama, Bafatá, Cacheu, Geba e Gabu entre outros centros urbanos, que numa mistura tribal com a cultura criston/crioula são essa tribo urbana moderna que dirigirá os destinos do país.
  
Embora a nossa comum cultura nacional (civilização) começou em Cacheu e Geba e nós de Bissau sejamos apenas herdeiros naturais de Cacheu, Geba e Bolama, esse cimento é feito na sua maioria de elementos de outras tribos, que sanguineamente “pertencem” as suas tribos mas culturalmente pertencem a esta tribo comum dos Bissauenses que é a tal elite de coesão nacional, na qual se deve apoiar o projecto de ressurgimento nacional. Se isso for possível através de uma revolução fecunda que destrua todas as antigas bases psicológicas erradas e apodrecidas para criar uma nova, ainda melhor, se não for possível, então será paulatinamente numa evolução. Mas, de uma forma ou de outra, lá chegaremos.

Estes fundadores do Crioulo, oriundos de Geba, Bolama, Cacheu e Bissau esta nova raça de cidadãos orgulhosos de terem a sua língua e cultura comum, génese de mistura tribal, fortalecido pela fome e sede, guerra e paz, sofrimento e recusa de resignar, com o seu forte sentimento de pertença a sua terra e a essa nova identidade e unicidade. Esse “forte sentimento de pertença” vindo de um passado tribal, como todos os povos do mundo, gerou por sua vez a idiossincrasia e modo de ser do nosso povo, com a sua língua, as suas tradições, sua música, costumes e dogmas. Esta cultura crioula hoje é a cultura nacional. Essa nossa cultura que é património de todas as tribos que sempre habitaram este território; tribos que, cada qual a sua maneira, deram o seu contributo único para o seu surgimento e existência.

Portanto, foi na sua impaciente procura de identidade, que o nosso povo cria a língua de comunhão nacional; e os falantes do Crioulo tornam-se por obra e graça de uma osmose cultural “Crioulos”. Esses Crioulos que com os seus Gãs eram os fiéis depositários de um passado pouco glorificado no presente, pois é esse passado, dos nossos avós, os fundadores do Crioulo, fundadores da cultura nossa, que almejávamos.
Essa cultura comum de filhos de todas as tribos é que nos faz Guineenses e não Senegaleses, Gambianos ou Malianos. Na verdade a única verdadeira maneira de dar valor a nós mesmo é estabelecendo a nossa identidade nacional, baseado na língua crioula como há quatrocentos anos. Pois como já afirmamos varias vezes, não é necessariamente (apenas) uma junção consanguínea de tribos que forma um povo; nem o facto de estas viverem lado a lado num mesmo território herdados de uma dominação anterior, seja qual ela tiver sido. Pois pode bem passar sem a consanguinidade, mas nunca sem a raiz do seu existir ou o que o faz ser “esse determinado povo” e não um bando desgarrado de indivíduos.

Mas isso só valerá alguma coisa se o seu resultado for a valorização do homem Guineense como um todo, como um “conjunto de homens” unidos por um destino comum, que muitos teimam em não ver. E esta mudança só terá valor se proporcionar uma tomada de consciência nacional, que por sua vez vai originar uma mudança fundamental no conjunto do povo para deixarem de pensar como tribos, para passarem a pensar como povo.
Um povo que será herdeiro de um país que não é apenas mitológico, mas que existiu nos corações e almas da nossa gente. Por isso fala-se de Bolama de antigamente, do paraíso que era Geba, da civilização de Cacheu da Silva, dos filhos de Bissau Nandô, do Crioulo de Farim, da cultura de Geba das trinta e duas pontas do Rio Grande. Dos costumes antigos, da educação que havia, do respeito para com os mais velhos, dos bailes e saraus culturais, dos “gãs” etc., etc., e ainda hoje todos nós queremos ir a Bambaya dos nossos sonhos de infância…, para por fim, sermos felizes na nossa terra…

O MEU CÂNTICO

Agora ouçam o meu canto, canto que alguém me contou uma noite de estrelas luminosas, sentado no velho porto de Buba, onde a brisa da maresia nos acalentava. Sonhado com uma linda marginal que no futuro, rodearia toda a vila e vingaria a destruída de Bissau para ser a mais linda desta costa de Africa. Assim olhando, os pontinhos de luz no horizonte, tentando alcançar com os olhos a outra margem em frente, imaginado o passado, imaginado a vida nas trinta e tal “pontas” que já desapareceram, onde se bebia champanhe e comercializava-se com a Inglaterra em 1930 e tal… e uma velha que não se aquietava, que cada momento interrompia, os meus pensamentos e destruía as minhas divagações, susteve o meu braço e o poisou no podre madeirame e me sossegou para contar o que ouviu dos seus avós, de como tudo começou. Escuto a sua voz rouca e fico a saber como o Geba nasceu, como a cultura nasceu, como a Guinendade foi parida, ali; ali mesmo, a esquerda, lá onde vês essa luzinha tremulina… foi ali que a nossa cultura comum nasceu há centenas de anos, no dia em que uma mulher, habitante das margens do Rio Grande, pela primeira vez falou em Crioulo com o seu filho recém-nascido.

Nesse dia, sem saber porque, guiada apenas pelo coração e pela herança cultural de seus pais, pela primeira vez, não falou em nenhuma das línguas das tribos da nossa terra; também não falou na língua do colonizador; nem sequer falou no dialeto com que a sua mãe tinha falado com ela quando nascera; quando lhe disse que maior que ela, só o Rio Grande… nesse longínquo dia, ela decidiu falar com o seu pequenino filho nessa língua nova, que há pouco surgiu, durante a sua adolescência, e pouco a pouco se espalhara pelos campos e aldeias perdidas, levado pelas águas dos rios e vento das florestas profundas… e que ainda continha poucas palavras e nenhum verbo, mas que um dia viria a chamar-se, orgulhosamente, Crioulo…

Era num fim da tarde, nas margens do Rio Grande, enquanto o sol desaparecia no horizonte, mas sustendo-se um pouco mais, para ouvir essa mulher, a mãe do Crioulo, anunciar uma nova língua. Ela, de costas para o curioso astro, fitando as douradas águas do rio, pousou de mansinho os seus lábios no ouvido do menino e disse num murmúrio que nenhum ser vivo ouviu, só eles, a mãe e o filho: “ami ki bu mame… abô i nha fidjo”.

As águas douradas pararam por um instante o seu leve balancear, e os sons montaram na garupa das ondas e atravessaram todos os rios dos Rios da Guiné. Estas palavras, agora sagradas, levadas pelas águas, as vezes revoltas, as vezes plácidas, como só os nossos rios sabem ser, subiram todos os rios e desaguaram por fim, em todos os caminhos e praias da nossa terra. Por fim aportaram em praias arenosas, litorais escarpados, costas lamacentas. Subiram montes, desceram os vales, atravessaram profundos matos, galgaram os montes e vales, passaram por Varela e Bruce, Cassuma e Quinhamel, aportaram nas vilas e tabancas ao sabor dos ventos, na garupa de cavalos de caçadores, no cajado dos pastores, na boca dos djidius, missionários e aladjes… por fim subiram ao porão dos navios negreiros, e nos corpos nus riscados pelo chicote, nas feridas gangrenados dos nossos avós, atravessaram o Atlântico passaram pelas ilhas de Cabo Verde e rumaram para outros mares do mar Atlântico e chegaram as Caraíbas, a ilha de Cuba e a América… e nesses confins do mundo, o sangue do nosso povo correu livre nas veias de outros povos...

Assim nasceu a cultura Guineense, a Guinendade, da boca dessa mulher, e cresceu no peito desse menino, filho dessa a mulher, que primeira falou Crioulo no ouvido do seu filho. Dessa frase, dessa decisão, nasceu a nossa cultura comum.
Com esta frase nasceu, pois o menino já não apreendeu outra língua que não seja esta, e anos depois, feito homem, nas margens de outro rio, na mesma terra, viria a dizer ao seu filho na mesma língua que tinha ouvido ao nascer, que ele era guineense porque os guineenses são os que nascem nos Rios da Guiné… são os que falam o Crioulo dos Rios da Guiné… que são como ele, quem, tirando o Corrubal e o Geba, o Ceu e as estrelas, o Povo e a sua língua, nada era maior… nada; nada; nada…

Por: Fernando Teixeira
Bissau, 8-16 de Abril, Semana da Crioulofonia/Purmeru Sumana di kriolofunia