domingo, 18 de agosto de 2013

O HOMEM QUE FOI UM CLAMOR

Arq. Fernando Teixeira 

“Guineenses bô temkuossa!”
Guillaume Thieriot , 26 de Julho de 2013

ALGO QUE FICOU, PASSANDO…
 Hoje, dia cinco de Agosto, o Sr. Guillaume Thieriot partiu de vez do nosso país. Possivelmente partiu alguns corações, provavelmente deixará saudades e algumas lágrimas recolhidas a pressa, como diria o poeta. Cinco dias antes, quarta-feira, 31 de Julho, na biblioteca do Centro Cultural Franco Guineense de Bissau, resolvi começar a escrever este texto sobre ele ainda “sob” ele, pois dentro de dias deixaria de ser o “nosso” Director, do “nosso” Centro Cultural Francês de Bissau. Escrever sobre ele, nessa sala de leitura, enquanto ainda era o director do Centro, mesmo que por apenas mais alguns dias, era uma espécie de solitária homenagem que lhes prestava. Uma homenagem, silenciosa e íntima (pois só conhecida por mim) ao homem simples mas especial que é Guillaume Thieriot.

Essa atitude, que agora na quietude desta outra sala, parece-me pueril, veio a ter outros significados que não apenas os que motivaram o meu objetivo inicial (escrever sobre as suas realizações, para que no futuro algo ficasse “escrito na pedra”, e não apenas nas recordações esparsas de cada um e apenas lembradas nas “passadas” futuras dos contemporâneos que com o tempo caem no esquecimento colectivo).

Não sei se a proximidade da separação pode não aguçar o engenho, mas repousa os sentires e permite um olhar, se não diferente, pelo menos mais equidistante e quiçá mais justo; mas também, pela frescura da memória, permite um contar mais autêntico. Devo escrever agora, nos ecos da despedida, na profusão das homenagens, todas merecidas, que este Senhor da Cultura teve, por ocasião da sua partida. Mas encontrar para esta minha, algo “mais”, algo de perene, algo que não se dissipa com as últimas bolhas da última garrafa de champagne.

Mas como abordar este homem social e culturalmente multifacetado de forma correta e autêntica, de modo a não influenciar o leitor com as nossas pretensas afinidades, criando uma simpatia artificial por uma personagem ideal (que não os há) que teria vivido entre nós numa determinada altura? Mas como uma homenagem é sempre uma homenagem, correremos sempre esse risco, mas quando não o ignorarmos, mas pelo contrário seja um dos pressupostos da nossa análise, em vez de um problema, torna-se uma mais-valia.

Não sei como “chegarei” ao Guillaume Thieriot, e como dali o levarei a vós, e se serei bem-sucedido, mas independentemente do que daqui “sair”, como esta é também a minha despedida, para elucidar os meus sentimentos, direi simplesmente como ele disse no seu discurso de despedida na embaixada de França “(…) Continuo até com muitas interrogações. Mas talvez um papel me venha, ou melhor dizer, não um papel, mas um líquido. Aquele líquido onde se mergulha um papel para revelar uma fotografia. (…)”

Estas frases, metafóricas, como ele as caracteriza, talvez me sirvam também nesta tentativa de “revelar” - mesmo que apenas um pouco, mesmo que apenas “a preto e branco”, na falta de um rolo colorido ainda - algo sobre ele, e principalmente sobre o seu legado, que ainda não foi dito ou apreendido. Por isso começo assim, sem pressas de mansinho, pois como disse o saudoso Amílcar Cabral “porque tenho pressa é que vou devagar”.

Mas quando numa compulsão quase Descartiana, decidi assim proceder, não esperava que essa inusitada decisão levar-me-ia tão profundamente ao meu passado; a recordar coisas que tinha sepultado, há muitos anos, naquele cemitério de recordações mortas, que carregamos toda a vida, mas onde cuidadosamente evitamos entrar; a lembrar coisas que não escrevi quando devia, no seu tempo, no calor dos acontecimentos, e hoje estou deveras arrependido. Por isso entendi que é este o momento de escrever sobre algo, feito de homens e actos, que mais do que passou… ficando, ficou passando. Pois se “nada acontece até ser contada” como disse Virgínia Woolf, aqui nestes tempos, algo “aconteceu” e mesmo que não fosse contada, mereceria sê-lo.

O INVENTOR DA CRIOLOFONIA
Em Bissau, nos tempos que correm, raramente nos aparecem individualidades tão marcantes, seres humanos tão relevantes, como ele, pela sólida cultura, pela competência e vontade de fazer, alem de uma enorme simpatia. Resumindo, o Guillaume Thieriot era um conhecido com quem poucas vezes (muito menos do que quereria) conversei sobre o nosso país, literatura, música, politica ou seja lá o que for, que obviamente eram do meu interesse, mas que também, pelos seus actos e realizações, notoriamente dele. Cruzávamos muitas vezes pelo all do Centro Cultural Francês. Encontrávamos nas vernissages, estreias de filmes, lançamento de livros, espetáculos musicais, seminários, encontros e outros eventos e cerimónias, que através da sua pessoa, o Centro realizava.

Há uns meses, num artigo, em que falava da “crioulofónia” - palavra patenteada por ele, que é o mais novo vocábulo da língua crioula -, (texto esse publicado na fecebook na página da “Terceira Via Guineense”), acabei falando deste senhor, nestes termos: “(…) Nas artes plásticas, na música, cinema e agora em prol da nossa língua nacional de comunicação, o seu legado é enorme e será certamente lembrado por muitos bons anos. Uma pessoa que por acaso do destino reúne num só individuo culturas diferentes como o Francês, o Brasileiro, o Guineense e seguramente outros que não sei. Cosmopolita por excelência, conhecedor da realidade Guineense, falante do Crioulo, amante da cultura Guineense, proporcionou-nos a todos durante estes últimos tempos um verdadeiro reencontro com a nossa própria cultura. Dele pode-se dizer, sem risco de errar, que “se mais não fez, mais não pôde.”

Estas palavras soam a um panegirico, mas não o são; são apenas uma constatação que centenas de pessoas podem repetir sem nenhum problema de erarem. Por isso falar dele, por quem já disse o anteriormente dito, não deveria ser difícil; era apenas, numa questão de justiça, baseando nesse texto, escrever por exemplo “tudo o que disse atrs é verdade, mas pequei por modéstia; é necessário dizer que tudo isso é verdadeiro, mas numa dimensão três vezes mais, etc., etc., ...”
Brincadeiras aparte (Guillaume gostava muito de brincar), mas na verdade, como o texto frisa, como “ser humano” , Guillaume Thieriot era “grande”; naquela acepção de grandeza que tem como base a “bondade de realizar” que uma vez frisei (sem ser entendido cabalmente) na caracterização da personalidade de Amílcar Cabral.

No dia da sua despedida na embaixada francesa, juntou, às três partes formais, constituintes de um discurso, três línguas dos presentes, mas não disse que falando em crioulo, português e francês, juntou estas três línguas a três outras dimensões de uma maneira magnífica: respeito por nós, falantes do crioulo, respeito pela língua do seu país, o francês e como não podia deixar de ser (sendo um diplomata) respeito pela língua oficial do nosso país. E isto não tem ligação com a “língua” mas com “dignidade”. Ou então não seria ele a dizer: « L’une de mes plus belles images au centre culturel, si je dois en garder une, cela aura été la clôture, la kabantada de la sumana di kriolofunia. Avec cette forêt aérienne de textes suspendus (…) cette littérature de corde, cette petite jungle de papier et de mots jetés en créole, et surtout tous ces visages heureux, tellement heureux, peut-être tout simplement de se voir reconnus dans leur dignité linguistique.

A maioria das pessoas tem dificuldade em respeitar algo, que sem ser abstracto, dificilmente é uma categoria mensurável ou mesmo “real” no seu pensamento, como a língua, embora a usem todos os momentos. Pois se o nosso respeito pela língua não tem a ver estritamente com a grandeza da “pátria” dessa língua, então vem do quê? Do respeito pela cultura (literária ou não) dessa pátria? Ou do respeito que temos pelos falantes dessa língua? Ou do respeito que temos por nós próprios, então que falantes dessa língua? Tudo isto não está ainda resolvido em mim.

Discuti estas categorias com o director Thieriot no seguimento de uma intervenção minha na comemoração de aniversário de um banco comercial, no Centro Cultural Francês, em que o chairman era ele. Nessa comemoração, a qui fiz menção atrás, critiquei o facto de um orador convidado falar em francês sem nenhum tradutor como se estivesse num país francófono. Mas pode ser que alguém pensou que era por não gostar de francês, mas falava apenas do respeito que os países e cidadãos de cada país devem ter uns pelos outros pertencendo ou não a uma organização transnacional. Sempre gostei da língua francesa de forma especial e tratei de a aprender nesse mesmo Centro cultural quando ainda no Liceu e depois da faculdade.

Mas criticando o facto do orador se ter exprimido na sua língua, “sem respeito” pelos falantes de português, não retirava o profundo respeito pela língua de Victor Hugo e Balzac, que adoro mais do que respeito a cultura francesa, por tudo que deu ao mundo. Entendo mesmo que nunca, no campo da cultura - se excetuarmos Hélade - outro país deu tanto ao mundo como a França. Quando digo “tudo” quero mesmo dizer “tudo”, no sentido que é tanto que nenhum outro vocábulo pode abarca-lo senão “tudo”. Mas também uso o “tudo” no sentido que “tudo” foi válido, mesmo o “terror” Jacobino da Revolução, que de uma forma enviesada, veio basear-se e legitimar-se na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão já proclamada.

Mas só volto a isto porque entendo que neste discurso de despedida – de que vos apresento fragmentos, para que possam entender quem foi o Guillaume Thieriot - ele, inadvertidamente, de certa maneira, dava respostas às minhas questões: “(…) Reconnaître une culture, reconnaître une langue, c’est reconnaître une personne, dans ses origines et donc dans son devenir, dans un même mouvement continu, des origines au devenir, comme celui qui va de la semence à la moisson. Entre les deux, c’est une affaire de confiance. Mais que l’on peut aider à gagner, par la reconnaissance d’un regard, d’une histoire, d’une langue… (…)"

Falei das línguas que Thieriot dominava, escrevendo nelas e comunicando com elas. Não sei se “pensava” nelas. Só falamos realmente uma língua quando “pensamos” nela antes de falar “com ela”. O crioulo tem um “problema” pois muitos seus falantes embora não “pensem com ela” , falam-na lindamente. por isso os suecos, espanhóis e outros falam-na lindamente e na perfeição, embora pensem primeiro na sua língua materna e depois traduzem para crioulo, com tanta rapidez que nem notam o que estão fazendo. Ele presta-se também a esta “rapidez”, pois pela sua natureza podemos traduzir palavra por palavra, sem ser preciso primeiro traduzir frases inteiras, como nas outras línguas.

No Guillaume, percebi que interiormente, consubstanciava-se a dimensão respeito por ele mesmo, o homem - sem ser o único que nessa sala falava essas três línguas - que tinha com cada uma delas uma relação particular que ultrapassava de longe a simples utilização que a maioria faz delas, simples ferramentas de comunicação. Mas sabemos que nunca é apenas um instrumento de comunicação e interação, porque cada povo é aquilo que é porque a sua língua é aquela que usa; e inversamente a língua de cada povo é “essa” e não outra porque é determinada pela idiossincrasia do povo que o cria todos os dias da sua existência. Embora isto é muito mais complexo do que estas duas linhas possam exprimir. Mas se basicamente o “falar” crioulo pressupõe a priori pensar “em crioulo” , e este assenta numa aculturação crioula, um sentir “crioulo” comum.

Não sei como era com Guillaume, se alguma vez pensou em crioulo, mas falava crioulo na perfeição e usava-a também com lisura. se “pensava em crioulo” antes de falar crioulo ou se traduzia do francês (ou português) , mas sei que “pensava no futuro e presente do crioulo”. Há dias vi escrito na porta da casa de banho do centro a seguinte frase: “kasa de banio i di nós tudo, pabiadikila, bu dibidiusal…”, bom nunca vi em nenhum outro sítio em Bissau, um tal uso do crioulo parecido. Se um homem é a língua que fala, então, tout court, Guillaume também era “o crioulo” que falava maravilhosamente bem; até com uma “perfeição gramatical” que acho surrealista. Basta ir ao Centro Cultural Francês ver os dizeres em crioulo que lá estão colados. Na verdade poderia chama-lo também, sem errar, de “o homem que foi a língua crioula” em analogia ao titulo deste texto.

Ordidja-notanto

Continua...