sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Continuação: O HOMEM QUE FOI UM CLAMOR

Fernando Teixeira e  Guillaume Thieriot

UM ILUSTRE DESCONHECIDO

Como Gui di Bolama já falou dos brasões familiares do Guillaume Thieriot, resta-me voltar as palavras dele, agradecendo a nossa presença e o gesto em sua honra. Pois foi neste dia que fiquei a conhecer um pouco mais do percurso de vida deste cavaleiro. Durante a sua emotiva intervenção, Guillaume Thieriot acabou descerrando um pouco o véu sobre a sua vida privada (origens familiares) e profissional, e como veio a chegar a esta martirizada terra.

Nesse momento compreendi que pouca coisa conhecia da vida pessoal, para não dizer privada, deste homem afável e pausado. Mas como ele não é meu amigo isso era normal. nunca tomamos um copo juntos ou coincidido sair numa campainha comum, embora Bissau seja muito pequeno. Nem o número do telemóvel dele alguma vez tive no meu.

Nunca o conheci na intimidade, salvo uma vez, que o vi sentado no “café” Benfica, rodeado da esposa e os dois filhos, que vieram de visita, creio. Pela proximidade e exiguidade do espaço, mais do que pela educação, não pôde deixar de o cumprimentar (e já agora, não me apresentou a esposa, pois como disse, não eramos amigos. Mas como disse , não eramos amigos, nem sei se alguma vez fomos camaradas (“Cau pera sabura pa kunsi camarada. Sabura sucuro pa cunsi camarada”, bu lembra Guilherme?).

Friso isto por ser verdade e por uma outra razão; temos que começar a ser criteriosos no uso das palavras; toda gente, aqui, diz que ele era um amigo e vice versa. Discursam dizendo “o meu amigo Gui” e depois, isto ou aquilo. E muitas vezes esse tratamento não correspondia manifestamente a verdade).

Mas gostaria de ter sido seu amigo e o digo isto aqui sem nenhum pudor (se devemos ser rigorosos com as palavras, muito mais com os sentimentos) pois raramente em minha vida “quis”, conscientemente, “ser amigo” de alguém. Por isso possivelmente este texto é escrito também desta maneira como o escrevi, com algum sentimentalismo, mas sem vergonha do mesmo, pois como o G. K. Chesterton disse há tantos e tantos anos atrás, "O miserável receio de ser sentimental é o mais vil de todos os receios modernos." Por isso que Deus me ajude de não albergar esse “miserável” sentimento na minha alma quando falo deste outro senhor.

Mas “não ser amigo” é apenas uma condição necessária, mas não determinante, para o que dizemos. Quando digo que não somos amigos, quero que também entendam que por essa razão não o conheço, tudo o que viu, fez e ou mudou nesta terra. Por isso pouco posso dizer, mas mesmo assim, ainda há algo a dizer por mim. Assim, deste “não amigo”, deste “ilustre desconhecido”, qual um Cyrano de Bergerac Guineense, posso falar com tranquilidade e distanciamento.

Entendi algures que ele não quereria mais uma homenagem depois de tantas que lhe foram prestadas, mas realizações. Ou diria que a homenagem que mais lhe agradaria seria a realização dos seus sonhos para nós que são tão grandiosos como simples: “(…) se acreditarem na sua língua, na sua cultura, em vocês mesmos, poderão fazer coisas maiores (…)”

Daqui parto para essa dimensão mais humana dele. Como disse não quereria que dele falasse, elogia-se e dissesse coisas bonitas, por mais merecidas que fossem, apenas por dizer. Mas aqui, através do Guillaume, devo falar de uma outra dimensão, a dimensão dos que ele influenciou consciente ou inconscientemente. Como exemplo dou o de um grupo musical Guineense (da qual nunca tinha ouvido antes falar sequer), chamado estranhamente de “Exercito de Já”, que irrompeu pelo palco do Centro Cultural sexta passado a cantar música Reggae.

O vocalista, uma cópia jovem do grande Bob Marley, mas com todos os maneirismos deste, brindou-nos no fim com umas eloquentes palavras em inglês, português, crioulo (e uma tentativa pouco conseguida em Francês); basicamente disse que agradecia ao Guillaume por ter sido o primeiro que neles confiou neste país e o primeiro a lhes dar uma oportunidade de poderem apresentar-se ao publico tocando a sua música. O primeiro a acreditar neles (podia ter sido o último em não acreditar, ou mais um apenas, que não acreditou)? Aceitam que para estes jovens esta dimensão é diferente de tudo a que estão habituados neste país? Bem, falei destes, que conheci, mas quantos outros haverá que só Guilherme conhecerá porventura? E porque ele e não nós?

Entendo que a “mudança de pensamento” na direção de valorização da cultura, nunca deve ser um fim em si, mas apenas um caminho para a valorização de homens como um todo, como um “conjunto de homens” unidos por um destino comum, que muitos teimam em não ver. . Em outro lugar afirmei que “não se salva um povo pela economia, mas pela cultura” , querendo com isso dizer que se a economia é a base sem a qual nada é sustentável, a cultura é a superstrutura sem a qual não existe e não existirá a nação.

 II
Há frente vos falarei da cidade de Moscovo e a sua ligação (!) com Guillaume Thieriot, através de mim; ou a minha ligação com essa cidade através dele; Já nem sei a quaantasando, mas por agora quero vos contar uma pequena história que veio dar o título a este texto. Pouco depois de ter concluído a faculdade, um dia em Moscovo, tendo levado a minha esposa e filha ao aeroporto de Sheremetievo a fim de viajarem para Lisboa, na volta conheço um velho latino americano, que já vivia há muitos anos em Moscovo. Como o metro é tão grande como essa cidade de 12 milhões de habitantes, demoramos quase uma hora a chegar ao centro. Pelo caminho falamos de muita coisa, desde Mayakovski ao Balet Russos, passando pelas lutas de libertação, Cuba, Angola, perestroika (que estava no seu auge), Gorbatchov e de outras coisas também importantes, como da beleza das mulheres.

Moscovo é uma cidade de mulheres bonitas que entram e saem das carruagens do metro numa profusão tal que era impossível apreciar cada uma delas mais do que três minutos inteiros. Na altura, capital de um gigantesco estado multinacional e transcontinental, nessa cidade havia todos os tipos de mulheres que existiam neste mundo; desde caucasianas, asiáticas, orientais, indianas, chinesas, mongolianas, e de todas as variações possíveis dentro desses grandes grupos. Loiras, ruivas e morenas (todas as tonalidades imagináveis de loiro, ruivo e moreno) de olhos azuis, verdes, negros, e tantas outras impossíveis de quantificar.

Era tanta beleza em cada carruagem que era impossível catalogar. A tentação de olhar para todas, de por um minuto ter nos nossos olhos essas maravilhas da natureza, era grande, mas os olhos eram apenas dois e de nenhuma maneira era possível. Abatido pelo cansaço, acabei desistindo , e o velho que apreciava os meus olhares, enquanto respondia as suas perguntas, disse meio sério, meio a brincar, algo que até agora não esqueci, embora que passados vinte anos: “Fernando, no se puede tener a todas las mujeres del mundo, pero tenemos que hacer lo posible”, ou qualquer coisa de muito semelhante; isso me fez rir tanto, como ainda rio agora ao relembrar. Mas só conto isto, porque com apenas quinze anos, sem ainda conhecer nem Dacar e muito menos Moscovo, resolvi ler toda a biblioteca nacional, em apenas três meses (férias grandes).

Nessa altura, depois da minha frustrada tentativa (também abatido pelo cansaço, decepcionado comigo mesmo, quando as ferias findaram), continuei com a minha decisão; mesmo no período escolar sempre que podia a ir a essa biblioteca. Embora já tinha percebido que a decisão tomada era irrealizável. Mas a analogia que encontrei entre as duas situações me fez pensar que então, a dificuldade já era a mesma, por isso a decisão, embora inconsciente, deveria ter sido igual: “não se pode ler todos os livros do mundo mas devemos fazer os possíveis”.

Mas nem tudo foi perdido, nessa minha tentativa, pois conheci escritores que nem imaginava existirem. Mas para este texto só falarei de um que tinha escrito livros com títulos estranhos, como “O HOMEM QUE ERA QUINTA FEIRA”, “NAPOLEAO DE NOTINGHAM HILL “, e outros tão estranhos como estes; chamava-se Gilbert Keith Chesterton. É inspirado nele que vou buscar o meu título para este texto e uma descrição para o meu homenageado: O HOMEM QUE ERA UM CLAMOR.

Assim chamei Guillaume de “Um Clamor”; de facto foi um clamor na noite escura da cultura Guineense. Pois um clamor mais que uma luz, chega a todos. Uma luz só é vista por quem olha em sua direcção, mas um clamor é espalha-se por todas as direcções; acorda-nos mesmo se estivermos a dormir. Sendo como ele, um homem temerário nas palavras, chamo-o como deve ser chamado. Que dizer mais dele? Ou por outro, o que não deve ser dito, o que é pouco relevante, o que pode ser deixado de lado da vasta obra do Sr. Thieriot? Se não estamos a escrever uma biografia , como medir a importância deste vulto para o nosso país? Desse que se orgulha de nós, as vezes mais do que nós próprios? Nas suas emotivas palavras 
“N’ta sinti orgulhu kada bias ki n’tene ki fala di Guiné Bissau la fora.”

Eu sinto orgulho de ouvir você dizer que sente orgulho de nós Guillaume, porque sei que é desinteressado, é apenas, produto da amizade e vivência comum. Prevejo que esta vivencia venha a dar frutos e coroar mudanças que já despoletou, prevejo profundas mudanças na nossa maneira de relacionar-mos com a nossa cultura.