domingo, 21 de novembro de 2010

Não há narcotraficantes propriamente dito na Guiné-Bissau

               Foto: U.E. Martinho Dafá Cabi


IIª Parte: Entrevista com M.D.C

O – Vamos falar também do Martinho Dafá Cabi, chefe de governo ou primeiro-ministro da Guiné-Bissau isto para perguntar qual o balanço que faz desse período?

M.D.C. – Bom como sabe nós tivemos em mãos, um governo numa fase de transição, ou seja, vamos recuar no tempo, para constatarmos que o governo legalmente eleito e vencedor das legislativas de 2004 ganho pelo PAIGC, teve problemas pelo facto de existirem desentendimentos de dois órgãos de soberania e institucionais, à Presidência da República, e à Primatura. Se abordarmos de forma profunda esta questão, reparamos que pelo facto de duas pessoas, terem problemas pessoais, repito, problemas pessoais, não dignificando as Instituições que representavam, fizeram com que esses problemas pessoais fossem transformados em problemas de política nacional, ou numa questão de Estado. Essa foi a verdade dos factos. Mas também não houve da direção do nosso partido, uma abertura atempada, para dar melhor resposta a essa situação.

Quero portanto dizer que, um partido que ganhe as eleições legislativas, com uma maioria relativa, como era o caso, tem que ser esse partido a reconhecer e a avaliar se deve governar ou não, com os outros partidos. Essa iniciativa nunca deve partir de um Presidente da República (PR). Portando, o partido vencedor é que decide, se aceita coligação ou não, sob pena de ser derrubado na Assembleia Nacional Popular. E o que se verificou na altura foi – a demissão de um Governo eleito, porque alguns deputados se juntaram e convenceram o PR, criando uma crise fictícia, que viria a derrubar o governo legitimado através do voto. Foi isso que aconteceu, com o agravante dos problemas pessoais que vinham de trás, a decisão foi o que se viu! Portanto as pessoas que não ganharam nas urnas foram ganhar na Presidência.

Nós entretanto enquanto militantes e deputados do PAIGC, não baixamos os braços, depois de um ano a concertar numa primeira fase com o PRS, e depois com o PUSD, conseguimos um facto único na era da Democracia. Que resultou numa demissão daquele Governo imposto pelo PR, por via democrática, e na assembleia, através duma Moção de Censura. Isso nunca tinha acontecido na jovem Democracia guineense.  

Mas já só faltavam praticamente um ano, para o fim da legislatura, e com tão pouco tempo, não podíamos fazer muita coisa, decidimos fazer uma intervenção que se resumiu na tentativa de: acalmar o ambiente político, combater os fenómenos mais preocupantes, trabalhar a imagem do país e organizar as eleições. Mas como nunca temos tempo para governar na Guiné-Bissau, inventou-se uma outra crise, que resultou na queda do nosso governo. Mais uma crise inventada, para juntar as outras…

O – Temos memórias desse período, houve até uma situação um pouco embaraçosa envolvendo também o seu Ministro de Interior na altura, que era o falecido Baciro Dabó?

M.D.C. – A nossa compreensão e visão do país era diferente daquela que o PR, tinha. Tivemos grandes divergências, com ele, mas uma coisa é certa, nunca trouxemos isso cá para fora, pois consideramos que o Estado, é como se fosse uma família, as confrontações internas tinham que ser resolvidas internamente, tentamos sempre harmonizar as pessoas, se reparar o nosso governo, nunca teve problemas com os jornalistas, houve uma liberdade de expressão sem precedente. Mas sobre o caso que me pergunta, o problema ficou resolvido rapidamente, e não foi preciso muita coisa, apenas mostramos uns e outros, de forma clara, quem era o Primeiro-Ministro e quem era o Ministro do Interior. As responsabilidades estão escritas no papel de cada um. 

O – O vosso governo também tinha um nome baseado numa carta, pacto, fórum…Estabilidade Nacional…

M.D.C. – Exatamente, o nosso governo chamou-se de Pacto de Estabilidade Política e Governativa. Tivemos elementos do PRS (Partido Renovação Social) do PUSD (Partido Unido Social Democrático) e alguns independentes, no governo. Tentamos sempre incluir mais pessoas e incluímos várias formações políticas, como se pode constatar. Porque quando tivemos aquele episódio em 2005, tivemos que fazer alguns estudos ‘existem documentos para quem quiser consultar’. Até hoje mantenho a tese de que só se conseguirá governar equilibradamente, incluindo. Até porque fizemos um estudo, como dizia a pouco, e percebemos que na Guiné-Bissau, nos próximos 10 à 12 anos, mesmo que um Partido ganhe – tendo até 80 deputados, se não souber conviver com os outros partidos, se não souber desenvolver uma boa via de diálogo e concertação com os movimentos da sociedade civil, vai ter sempre dificuldade em governar, e será por vezes uma desgraça. E vai ter que inventar ou criar algumas crises fictícias, para poder se manter ou sair no poder. E infelizmente isso está a repetir-se na nossa política.

O – Para não sairmos deste tema, até porque neste momento estamos a assistir momentos conturbados, o que leva muitas pessoas a avançarem que provavelmente o problema está no sistema político guineense, sendo semi- presidencialista, e pelo o que se tem visto nos últimos 16 anos, pois nunca um governo resistiu uma legislativa completa,  qual é a sua opinião sobre isso?

M.D.C. – Então neste caso, o que podará dar certo, na Guiné? Ao meu ver, isso depende dos homens, e não do sistema. Então não tivemos um partido único, e em quê que se deu? Onde tínhamos só um Presidente, que era chefe de Estado e chefe de Governo. O quê que se deu? Foram 18 anos! Nestes moldes é que devemos ver as coisas, nós é que não implementamos as coisas como deve ser. Porque está claro, se assumirmos o compromisso com o que está escrito na Lei e na nossa Constituição, formos capazes de interiorizar bem: o Papel do PR, o Papel da Assembleia Nacional Popular; o Papel do PM e o Papel do Poder Judicial, e cumprirmos todos seguindo à ‘pé da letra’ aquilo que está escrito, não haverá problema nenhum na Guiné-Bissau.

Mas quando temos situações em que o PR quer constantemente fazer o papel do Chefe do Executivo, aí vais ter problemas e haverá crises políticas, e quando também o PM não respeitar os outros partidos da oposição e muito menos a sociedade, aí terás problemas. Quando também o PM, não respeitar os militares, vais ter problemas, e quero chamar atenção pelo seguinte – quando analisamos as questões desastrosas da nossa política, fazemos sempre enfoque para os militares, mas na verdade sou da opinião que todos os problemas têm origem na classe política. A classe política parece não ter um sentido de União. Aliás o segredo foi-nos mostrado pelo Cabral, a arma do sucesso da nossa luta foi a União.

Quando alguém conseguir levar todos os guineenses no mesmo barco, mostrando um projeto de Unidade Nacional, credível e sério, não teremos mais problemas. (Problemas na Kaba na Guiné). Mas é fundamental que não se segregue ninguém, pela sua origem étnica, deixarmos de ver o outro, primeiro como Bijagós, Balanta ou Fula e, passarmos a vê-lo como guineense. O guineense! Se despirmos todos desses preconceitos que nos separam, que nos dividem e passarmos a olhar para os nossos princípios comuns, não haverá problemas na Guiné-Bissau.

Mas o que acontece até agora e foi-se fazendo até então foi criar maneiras de separarmo-nos pelas nossas origens, e deixa-me dizer-lhe que à classe política tem a maior cota de responsabilidade nesta questão. Temos todos que parar com isso.     

Aliás quando escutei o discurso de tomada de posse do PR, havia no discurso, uma  passagem em que ele sublinhava que seria “o garante da estabilidade e reconciliação nacional” fiquei satisfeito e peço ao PR que se oriente por esse caminho, porque só ele enquanto primeiro magistrado está em condições de proceder essa mudança. Conhecendo-o como o conheço, ele é um homem pacífico e dialogante capaz de elevar o nível da Democracia guineense. Porque todos sabemos que uma “moranssa” (grande casa de família) que não tem chefe de família, não tem nada. E no Estado temos que servir e não ser servidos. Mas por vezes é a pobreza que nos torna muito vulneráveis e, o estado de sobrevivência que se instalou no nosso país leva-nos a ter que suportar muitas coisas.
Foto: U.E delegação guineense saudada pela congénere portuguesa

O – Visto os problemas políticos, falou da Pobreza e de algumas questões Sociais, enquanto primeiro-ministro, teve que lidar com um tema central e defendeu até combater de forma frontal as questões ligadas com esse tema, o Narcotráfico, como foi esse período?

M.D.C.– Posso até lhe garantir que tivemos grandes sucessos no combate ao Narcotráfico. Nós definimos claro que iríamos combater esse flagelo em todos os cantos da Guiné-Bissau, custe o que custar. Mesmo que tivesse que custar as nossas vidas, deixamos claro que iríamos aceitar esse desafio. Mas nessa matéria, é preciso dizer que a Comunidade Internacional não tem ‘grandes verdades’ com relação à Guiné-Bissau. Prometem grandes apoios, e maior parte das vezes esses apoios não chegam. E quando chegam, vêem fora do prazo planeado e prometido. E isso dificulta grandemente a política de combate, ou mesmo toda a estratégia montada.

Mas nós internamente mobilizamos alguns mecanismos, por exemplo convocamos todas as instituições e todas as pessoas em que pendiam algumas informações e acusações de envolvimento no tráfico, e fomos muito claro com eles. Nós afiançamos-lhes que não iríamos aceitar e nem tolerar, qualquer tipo de envolvimento desses indivíduos no narcotráfico. Começamos com os militares, em pouco tempo conseguimos fechar o aeroporto de Cufar, depois fechamos o aeroporto de Gabu mas é bom que se diga, fizemos tudo isso graças ao envolvendo das nossas Forças Armadas e Forças de Segurança. Em Bubaque, conseguimos travar os voos noturnos, lembram-se que capturamos na altura dois aeronaves em Bissau. Olhe por exemplo um desses aviões, foi colocado em leilão agora pelo governo. Esses aviões foram detidos quando tivemos a dirigir o Governo.

Em relação a uma dessas aeronaves, tivemos um caso extremamente estranho, isto porque: nunca se descobriu quem autorizou a aterragem no aeroporto dessa aeronave.

Quando tivemos as informações fidedignas, de que se encontrava no solo guineense um avião que transportava grandes quantidades de cocaína, nós entramos logo de imediato em ação. Primeiro, tentamos saber quem tinha autorizado a aterragem desse avião? Porque não vindo ordens da parte do governo, fomos perguntar à Presidência da Republica quem autorizou, disseram-nos que não foram eles, fomos ter com os militares, tive duas horas de conversa com o Chefe de Estado-maior na altura, nada confirmamos com todos os ministérios afetos, se a ordem não partiu deles, e nada.

Todos diziam que não sabiam quem autorizou. Foi daí que pedimos a intervenção do ministério público, que decretou de imediato a detenção do aparelho e, do funcionário de serviço na ‘torre de controlo’ nesse dia. Mas mesmo assim não se conseguiu desvendar o mistério. Mas também não nos foi dado tempo. Pois como decidimos que faríamos tudo que tivesse ao nosso alcance, para desvendar o caso, fomos demitidos. Provavelmente foi o principal motivo ou melhor um dos elementos centrais para a nossa demissão enquanto executivo. Mas olha o avião está aí! Ora de onde veio esse avião e com quem trabalhavam? Todos os elementos que recolhemos desse processo, foi entregue ao Ministério Público, que é órgão competente e tem poderes para investigar e resolver situação dessa natureza. 

Por isso defendo (e fiz isso na ONU), que não há narcotraficantes propriamente dito, na Guiné-Bissau. Traficante mesmo, não há, existem sim, facilitadores no nosso país. Considero isso porque, do meu ponto de vista, para ser traficante isso obriga muitos mais meios, superiores daqueles que sabemos que existem, na Guiné-Bissau. Os facilitadores têm meios muito rudimentares, praticamente servem apenas de elementos para ajudar o trânsito da droga no território nacional. Agora se tivermos consciência clara de que existem os facilitadores, e tivermos provas de que utilizam o nosso país como plataforma de passagem da droga para a Europa, esses facilitadores devem responder na Justiça.

E para terminar, criou-se muitos boatos sobre um dos processos que herdamos enquanto governo, que se prende com a questão da guarda da droga no tesouro público. Sobre este assunto só tenho a dizer o seguinte: não nos foi entregue nada, nem documento nem provas, de como foi resolvido esse assunto.

O – Mas o seu antecessor, Aristides Gomes, numa entrevista feita a partir de Dakar, através duma Rádio em Bissau, afirma que tinha provas e documentos que comprovam que essa droga foi destruída, confirma isso?

M. D. C. - Não confirmo. Como não nos foi entregue nenhum documento que comprove isso, desde que estivemos no governo até sairmos não tivemos nenhuma resposta convincente em relação a esse assunto.

Mas acredito também que exista muita dramatização, desse fenómeno do Narcotráfico, com relação ao nosso país. Porque se olharmos todo o contexto da África Ocidental, nós estamos longe de sermos os campeões nessa matéria. É lamentável por vezes escutarmos alguns países e organizações a quererem responsabilizar à Guiné-Bissau, como o supermercado da zona. E isso não corresponde a verdade. O que tenho a dizer é que tudo não passa duma grande mentira. Atenção: porque todos sabemos que na Guiné passam gramas e nos outros países o que escutamos e lemos, são apreensões de toneladas e toneladas. Temos exemplos como aqui mesmo em Portugal, onde estamos, então quantas toneladas foram capturadas, não há muito tempo, no Algarve?

O – Então como é que nós podemos combater este fenómeno?

M.D.C. – Isso é uma questão de Justiça, temos que acabar com a impunidade no nosso país. Temos que criar instituições que concentrem nesta questão, e que fique claro para todos de que, quem for capturado, e tendo provas do seu envolvimento nesse negócio, não há outra saída, se não a prisão. Cada guineense deve ser responsabilizado perante o crime cometido. Nada de deixar que os processos demorem tempos intermináveis. É preciso também realizar um trabalho pedagógico e sério junto da nossa sociedade ou população em geral. Sobretudo mobilizar as Forças de Segurança e toda a classe castrense, no combate a esse fenómeno, até porque todos consideramos que são eles os volantes desse negócio, na Guiné-Bissau.

Mas também o que acontece maior parte das vezes é o seguinte – os políticos e algumas pessoas envolvem os militares nesses negócios, complicados, e depois deixam ‘batata quente’ na mão dos militares, dou um exemplo: repare nos fenómenos relacionados com a os casos em que num acontecimento recente, o próprio Zamora Induta, enquanto Chefe de Estado-maior, disse que “os militares já tinham feito a parte deles” e faltava os políticos intervirem e fazerem a parte deles. Então neste caso houve instruções da classe política aos militares para executarem algo. Portanto sobre este assunto, considero que a classe política é que deve ser responsabilizada. Porque em pleno século XXI, quem quiser ser ditador vai ter grande trabalho.

O – Mas então considera que é difícil fazer funcionar a Justiça, na Guiné-Bissau?

M.D.C. – Penso que a questão é fazer respeitar a Lei. Porque as pessoas têm que saber pagar pelos seus crimes. Mas também penso que um país em situação estável politicamente, consegue fazer funcionar melhor à Justiça. E é preciso uma forma de fazer funcionar a Justiça, conseguindo que ela seja célere, eficaz e acessível para as nossas populações. Mas o nível de vida do guineense e o nível da pobreza com que se depara a sociedade é um obstáculo à Justiça. Na Guiné-Bissau, vê-se normalmente que, quem tem grandes posses, consegue viver acima da Lei. Quase que podemos considerar que é uma sociedade em que se exerce a lei da Força.

Nota Ordidja: 

Sobre as fissuras existentes o ceio do partido PAIGC, que foi o último tema abordado nesta entrevista com o ex-primeiro-ministro, Dafá Cabi, prometemos publicar em som áudio, como está registado, sem nenhuma tradução como prometido.

Falta a terceira parte. Terá só assuntos relacionado com o partido libertador, PAICG.