sábado, 20 de novembro de 2010

Martinho Dafá Cabi está de volta


Grande Entrevista: Iª Parte

Fez ontem precisamente uma semana, que à Ordidja propôs ao ex. Primeiro-ministro Martinho Dafá Cabi, uma entrevista. Face ao nosso inelutável vontade de criar uma seção de “grandes entrevistas” mas sobretudo perante a suprema obrigação que a profissão nos impõe, aqui está para você que nos tem acompanhado, a nossa primeira Grande Entrevista. Martinho Dafá Cabi dirigiu em 2007, o governo resultante de um Pacto de Estabilidade Politica assinado pelas três principais formações políticas da Guiné-Bissau na altura, PAIGC, PRS e PUSD.

Ao telefone fizemos com o nosso entrevistado, uma pequena abordagem das questões relevantes, que gostaríamos de focar nessa entrevista, pois pretendemos mostra-lo desde o início, que gostaríamos que a entrevista fosse o mais abrangente possível. Ou seja, era imperioso que falasse-mos de tudo um pouco, mas fundamentalmente, da situação insustentável que se vive na Guiné-Bissau, e o ambiente socio-político “explosiva”, das últimas semanas como pano de fundo.

A nossa proposta foi aceite de imediato, no preciso momento ao telefone ainda escutamos “estou a preparar o meu regresso para a Guiné, podemos marcar a entrevista sim, até porque se não for agora, não sei quando será, mas vocês é que sabem...” afirmou durante a nossa conversa telefónica Martinho Dafá Cabi. Há um ano a viver em Portugal, depois de um período prolongado de internamento devido a problemas de saúde, num dos hospitais de Lisboa, Dafá Cabi, afiançou sentir-se bem agora “estou preparado para voltar e retomar o combate político, passei um mau bocado realmente, devido à questões de saúde, cheguei em Portugal, com várias complicações, mas agora sinto-me bem e segundo os médicos já estou em forma”

Com a data e hora marcada, só faltava o imediato da nossa ação, fazer a Entrevista. Uma semana depois aqui estamos com o resultado: primeira entrevista de fórum político, realizada exclusivamente pela Ordidja. Uma entrevista feita em crioulo, e traduzido para português, e será publicado em três partes. As duas primeiras partes em texto e  faremos questão que a última parte seja publicado em audio, sem tradução. Esta entrevista foi conduzida pelo jornalista Helmer Araújo, com a colaboração de Alfa Djaló.
       
    Foto:(esq)Helmer Araújo e Martinho Dafá Cabi 


Ordidja – O senhor é guineense, nascido na Guiné, pode nos fazer uma pequena nota biográfica?

Martinho Dafá Cabi – Eu nasci em Nhacra, no ceio de uma família humilde. Foi nessa pequena cidade, onde fiz toda a minha formação primária até a 4ª classe, e depois fui viver para Bissau à partir dos 12 anos sensivelmente. Pois os meus pais e alguns dos meus familiares viviam nas zonas libertadas. Com o desenrolar da guerra para a independência houve uma evolução política na Guiné, lembro-me que na altura, fazíamos vários contactos, e tivemos sempre uma ligação com os elementos do PAIGC. Aliás essa ligação no meu caso foi natural, até porque tinha vários familiares que vinham e iam para o mato para à Luta, interessante, essas pessoas sempre nos aconselharam a estudar em Bissau, devido aos riscos que se viviam com os bombardeamentos na altura da guerra. Porque a nossa vontade e curiosidade era poder seguir com essas pessoas para as zonas libertadas.

O – Então teve a consciência e o contacto com a política muito cedo na adolescência ainda?

M.D.C – Desde muito jovem, porque desde dos anos 60, quando os colonialistas começaram a perseguir várias pessoas da nossa Tabanca, quando começaram a fuzilar, alguns dos nossos familiares, aliás arrisco em dizer-lhe que, Nhacra, deve ter sido das terras onde foram mais fuziladas pessoas, existem várias valas comuns, naquele Quartel de Nhacra que se vê hoje, se investigar, poderá descobrir as centenas e centenas de pessoas enterradas pelas tropas coloniais nesse lugar, e houve também muita torturas, por vezes escutávamos de longe os gritos, onde por vezes penduravam pessoas de cabeça para baixo, colocando a cabeça dessas pessoas dentro de agua. Episódios que escutávamos na Tabanca. Por exemplo, lembro-me duma situação que me marcou para o resto da vida, que foi quando o meu pai regressou para a nossa Tabanca devido ao falecimento do meu avó (pai dele), não sei quem, mas alguém foi informar as tropas coloniais, que ele estava lá vindo da Luta. De repente, numa madrugada invadiram a nossa casa, prendendo o meu pai e mais quatro ou cinco indivíduos da nossa Tabanca, que até hoje não se sabe, ou nunca mais soubemos os seus paradeiros, em relação ao meu pai ficou anos na prisão. Eu era adolescente na altura (estava a crescer na altura) mas tinha noção das coisas.

O – Mas dizia fez os seus estudos em Bissau? E depois…

M.D.C - Sim fiz, os meus estudos na Escola Técnica (olha graças ao Mamadaliu Djaló) onde estive a frequentar o Curso Geral de Administração e Comercio e depois frequentei o Liceu. Olha isso lembra-me até um episodio, acho que foi no ano 1972, em que tínhamos combinado com vários colegas, para fugirmos para à Luta, mas por um acaso cheguei atrasado ao local combinado para a fuga, não fui, e vários colegas que avançaram foram detidos, mas como eram menores e estávamos no início do ano letivo, esses colegas foram postos em liberdade. Praticamente fui para a zona libertada com o 25 de Abril. Foi a partir dessa data que estive a conviver com os “camaradas” atenção eu até 1976, fui militar, integrado nas Forças Armadas.

Depois fui chamado a dar aulas. Comecei a dar aulas no Internato Aureolino Cruz, no Sul, isto porque na altura, tinha já feito o 4º ano do Liceu, como havia falta de professores então faço parte do grupo que foi indigitado para dar aulas. Depois de algum tempo, regressei para Bissau, onde passei a trabalhar no Ministério da Educação e só depois foi-me contemplado uma bolsa de estudo para Cuba. Em Cuba fiz Economia do Trabalho, num estabelecimento frequentado por altos funcionários da administração cubana, foi um curso superior, isto porque, tive que fazer primeiro, o 12º grau e, depois estive 3 anos de frequência do curso, bom sei que por vezes não se equipara ao grau de licenciatura, mas é um curso de nível superior.

O – Como foi esse período depois da sua formação? Teve uma boa integração ou melhor como foi a sua reentregarão na Função Pública.

M.D.C. – Olha, tive um bom enquadramento, logo que cheguei fui colocado no Ministério da Energia e Industria da altura estávamos no ano 1983, um ano depois com remodelação governamental passou-se a chamar, Ministério de Recursos Naturais e Industria, e o ministro nomeado foi o camarada Filinto Barros. Desse período e nesse ministério guardo muito boas recordações, fui responsável de vários gabinetes de estudos, organizávamos simpósios internacionais, houve um por exemplo em 1985, que teve uma participação notável com especialistas vindo de vários países, mas também desempenhei a função do chefe de gabinete do ministro (Filinto Barros) durante vários anos, com quem aprendi bastante.

O – Nessa altura tinham muitas esperanças…

M.D.C. – Sim, mas a nossa esperança se batia, com a realidade de poucos quadros, com poucas pessoas com formação superior. Havia muita esperança, muito trabalho e poucos quadros. Trabalhei nesse Ministério que lhe falava com o camarada Filinto Barros, até 1992, quando foi transferido para ocupar a pasta de Ministro das Finanças…

O – Está a falar de um ano interessante 92, um período em que houve a abertura política, como viveu essa época?

M.D.C. – Na realidade, as coisas aconteceram em 1990, com o celebre Congresso do partido PAIGC, na Base Aérea, onde estive e participei enquanto militante do partido. Ou seja, para alem desta minha passagem pela administração pública, em paralelo fui exercendo política, estive sempre a fazer política. Fiz questão de integrar na base do partido, olha, nessa altura em todos os ministérios funcionavam algumas células do partido. Lembro-me quando se colocou a questão da liberalização económica, veio junto a liberalização política, e as novas filosofias entraram. Foi nesse ambiente que se fez o Congresso que refiro, onde se propôs uma abertura política mais sã, estive lá e assisti a tudo…

O – Foi uma grande mudança na altura?

M.D.C. – Do meu ponto de vista sim, foi uma mudança, porque sempre entendi que estávamos num caminho, não quero hoje dizer, errado, mas não estávamos a consolidar nada, a concepção que tinha na altura era de que, o partido PAIGC, a partir de 14 de Novembro de 1980, teve uma rutura política total, que muitos chamaram de revolucionaria. Mas essa rutura não foi positiva, teve situações absurdas, nunca visto em qualquer processo revolucionário, alias a partir desse período intensificaram as perseguições de “camarada pa camarada”. Lembrem-se que não tardou a surgir em 1981, a suposta primeira “tentativa” de golpe de Estado, que acusaram o Vítor Saúde Maria, foi denominada “golpe” dos Mancanhas. Logo a seguir, não me recordo com todos os pormenores, mas lembro-me que houve uma situação que vitimou até um capitão no aquartelamento de Brá, nessa altura estava a estudar em Cuba mas houve esses casos, todos os guineenses sabem desses casos.

O – E houve o celebre caso 17 de Outubro…?

M.D.C. – Esse caso então, chamado de 17 de Outubro foi um desastre total, para o PAIGC e para o país, lembre-se que foram mais de 50 os comandantes assassinados. Pessoas que morreram de forma violenta. Outros nem chegaram a ser julgados, mas sim pela forma como foram torturadas, não aguentaram e morreram. Porque aqueles que foram julgados até se chegar sentença, penso que dos responsáveis tidos principais eram apenas 12, pois lembro-me que tinham condenado 12, e depois foram fuzilados 6, mas foram cerca de 50 os comandantes mortos nas prisões. Por isso considero que, e este caso em particular é prova, do grande desastre político que o nosso partido PAIGC teve.

Foram situações destas que me levam por vezes a considerar o seguinte: no caso do (PAIGC) o que acontece é de que, parece que temos consciência que iremos bater contra uma pedra, e só quando batemos “damos à tapada” ao observarmos: só olhamos para o local onde caímos, pois nunca olhamos, o que nos fez cair. Tem sido assim ao longo dos anos. Mas então, como dizia a partir de 14 de Novembro de 1980 o descalabro se acentuou e foi um afundamento total. Se quiseres fazer uma pequena análise do que se passou realmente temos por exemplo alguns dados dos 6 anos antes do golpe de 1980: havia na Guiné 18 fábricas só no setor Industrial, sem contar com os do setor de Turismo, sem contar com os do setor dos transportes, e muito menos se conta com as várias infraestruturas desenvolvidas na altura. Esse golpe de Estado foi chamado de movimento Reajustador, qual foi o reajustamento que se fez? Se não camaradas perseguindo, matando camaradas, se queres que te diga, o sistema de partido único foi muito doloroso, foi semeando guerras sobre guerras, ao longo da nossa história…

O – E agora, essas guerras e perseguições terminaram?

M.D.C. – No meu entender não terminaram, e temos exemplos recentes disso, podemos analisar ao pegar em alguns elementos, para mostrar que a convivência prática que tivemos até agora, não nos valeu nada, somos obrigados a Mudar, não quero com isso dizer que seja necessário fazer uma revolução, não, mas somos obrigados a fazer uma transformação profunda no nosso país. E primeiro antes de tudo, é preciso implementar a cultura de Diálogo, de mão dada com à Verdade, deve existir verdade entre nós, e esse diálogo franco e permanente é que vai levar a Guiné para frente.

Não será nenhuma outra Força estrangeira que vindo do exterior, vai nos resolver esse problema. Na minha percepção ninguém do exterior tem ou terá uma solução para os problemas da Guiné-Bissau! Atenção quem julgar que chegando à Guiné e com Força Estrangeira irão resolver algum problema, estão redondamente enganados, que fique claro, que irão perder essa guerra, pode ser a maior potência do Mundo aliás temos exemplos recentes disso que foi o conflito 7 de Junho.

O – Muitos acreditam que só com uma Missão de Estabilização é que o país irá ter a dita estabilidade, mas pelas suas palavras parece ser contra uma intervenção estrangeira?

M.D.C. – Vamos ser verdadeiros, o problema da Guiné está no guineense. Temos que acabar duma vez por todas com a constante exclusão, discriminação, e segregação na nossa sociedade, é preciso criar mecanismos onde todos juntos poderemos conviver, no fundo é esta a grande Verdade. Enquanto não criarmos esses mecanismos de união, não pararemos de ser demagogos, e se não pararmos de enganarmo-nos uns aos outros, com tudo isso juntado não haverá tranquilidade no nosso país. Senão entre um e outro ano teremos problemas, porque as pessoas estão caladas, neste momento mas vão acumulando os factos, isso significa que, todos os fenómenos que vivemos desde 14 Novembro até os dias de hoje não terminaram, mas tudo depende de nós, por isso sublinho é preciso: Diálogo permanente, é preciso um clima de convivência pacifica é preciso criar Leis adaptadas a nossa realidade E essa tarefa exige planear e termos a consciência que atua continuamente pela busca dos Valores Universais, respeitando os direitos Humanos, a Liberdade de Expressão ou seja os grandes pilares da Democracia.             

 Foto: (esq) Alfa Djaló e Martinho Dafá Cabi


Não perca a IIª parte da entrevista:-)