quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Um Adeus à Solidão

               HOMEM DO SALDANHA


Crónica: Waldir Araújo

Três prédios apenas separavam as nossas moradas, na Calçada da Palma de Baixo, nesta Lisboa que é já de todos nós. “O Homem do Saldanha”, o Senhor João, o homem que acenava as pessoas numa esquina de Lisboa todos os dias ao fim da tarde, partiu. Como que numa alusão à sua solidão, o Senhor João escolheu um dia cinzento para o seu último adeus.

Depois do Saldanha, Belém era nos últimos tempos a sua nova parada. Impecavelmente vestido – e quase sempre trajando uma gabardina castanha – o Senhor João enfrentava a solidão com os sorrisos e as buzinadelas dos transeuntes que lhe retribuíam os acenos de cumprimentos que fazia a quem passasse por Saldanha ou Belém.

Durante anos cruzei-me com ele na esquina da nossa rua. Ao cair da tarde, benzia-se antes de cruzar apressadamente a esquina, para apanhar um táxi que o levaria ao ponto de encontro com a multidão. Por curiosidade quis saber mais sobre o “homem do adeus” e uma certa vez conversamos um pouco. Gentil, mas reservado e cauteloso, o Senhor João nunca quis falar muito sobre a sua vida, o que, naturalmente, respeitei.

A nossa relação limitou-se a simpáticos acenos de saudações cordiais, de boa vizinhança. E é assim que o recordarei para sempre. Um homem cordial que não aguentou muito tempo as agruras da solidão depois da morte dos pais, com quem sempre vivera. Das vezes que lhe falei nunca notei sinal de perturbação, antes pelo contrário. Era um homem lúcido e com assinalável conhecimento cultural, mormente no que diz respeito ao mundo do Cinema.

Pois, claro, ficção. Foi provavelmente a ficção que lhe dera mais alguns anos de vida, num mundo por si criado, onde todas as pessoas sorriam e trocavam acenos de saudações. Um mundo de fantasia sim, mas capaz de iludir a solidão e encher a sala vazia da vida de alguém. Inspirador, esse ritual de combate a solidão que fica imortalizado no fado “O Homem do Saldanha” cantado por Marco Rodrigues em dueto com Carlos do Carmo, num poema do Boss AC que lembra que “não é adeus, é olá que diz”.

O Senhor João faz parte da geografia humana desta cosmopolita cidade de Lisboa, cuja alma é feita de marcas de figuras ímpares que viverão para sempre na nossa memória colectiva. Pouco passavam do meio-dia desta quinta-feira, 11 de Novembro, quando, ao subir a minha rua, cruzei-me com alguns homens de uma agência funerária a entrarem com uma urna no número 11 da Calçada da Palma de Baixo. Arrepiei-me ao pensar no meu vizinho.

Poucos minutos depois confirmava-se o que eu temia. Sim, era ele, “o Senhor João do número 11” rendera-se. Cruzara para sempre os braços de longos acenos de saudações.
E por uns momentos imaginei uma multidão, da Avenida Fontes Pereira de Melo até ao Marquês Pombal. Uma imensa multidão acenando com um sorriso no rosto.