quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

A Renúncia do Pontífice

Carlos Vieira
Fonte: Globo

Por: CARLOS VIEIRA*
Em matéria do Correio Braziliense de 12 de fevereiro último, duas citações da fala do Papa Bento XVI me chamaram atenção: a primeira da Editoria: “Caríssimos irmãos verdadeiramente de coração vos agradeço por todo o amor e a fadiga com que carregastes comigo o peso do meu ministério, e peço perdão por todos os meus defeitos...”; a segunda, noticiada por Carlos Alexandre: “No ponto em que estamos eu confesso: a fé, a fé plena, a que não hesita, parece ter se tornado tão rara que, ao encontrá-la, ela me assombra mais do que a incredulidade.”

Joseph Ratzinger, num profundo ato de humildade, coragem e medo, tornou-se humano, sem o compromisso de ser “a palavra de Deus”. Na prima citação, a fadiga, ou seja, a falibilidade, a limitação e o cansaço de sustentar “a verdade absoluta”; na frase seguinte, um Papa, travestido de gente como todos nós, mostra sua falta de crença na fé absoluta de si próprio e dos seus cordeiros. “Habemus Papam”, humano, falível, angustiado, fóbico, humilde e corajoso – renunciar é uma desobediência divina – ou seja, Bento XVI mostra ao mundo o seu protesto, recolhendo-se ao claustro, talvez para continuar seus estudos filosóficos e teológicos sem compromisso com a prática.

Quero acreditar que, Ratzinger viu, após anos e anos de profundas meditações teológicas, que o mundo se transformou e, seu Estado Vaticano continuou prisioneiro do conservadorismo, da alienação aos problemas humanitários. Crises internas; escândalos de corrupção na administração; negação dos direitos à liberdade sexual, ao matrimônio dos padres, à importância da mulher no poder do Estado Cristão; uma política perigosa quanto à prevenção da AIDS, proibindo o uso de preservativos, e tantas outras questões atuais que o “Governo dado por Deus ao Vaticano” não suporta mais, a menos que haja mudanças estruturais e que “retirem proveito de um mal negócio(?)”, a renúncia do Pontífice.

Keats, o poeta, escrevendo sobre o que chamou de “homem de êxito”, e aí dava como exemplo a pessoa eterna de Shakespeare, alertou que: o homem de êxito é aquele que tolera conviver com a dúvida, o mistério e a incerteza, sem desejar apressadamente partir para fato ou razão. Bento XVI suportou pouco e evadiu. Evadiu, penso, movido por crises de pânico, hoje tão comum. Pânico de enfrentar e se responsabilizar por mudanças estruturais. Preferiu ir embora para o claustro, o refúgio, a solidão, não do “repouso do guerreiro” mas sim, do homem em desespero, ansioso, perseguido e sem fé que seus “Cardeais”, ajudantes do Rei, pudessem acompanhá-lo promovendo uma nova ordem na Igreja. Uma Igreja não tanto romana, mas uma igreja humanitária, sem conservadorismo e, como dizia Freud, uma eterna “compulsão à repetição”.

Edgar Morin – Sociólogo e filósofo francês nascido em Paris, em seu belo e profundo livro “Rumo ao Abismo? Ensaio sobre o destino da humanidade”, escreve: “Pode-se dar um nome ao que ainda não apareceu, ao apresentar um caráter incerto, caótico? Os antagonismos da modernidade alcançaram um grau paroxístico. Tudo se passa como se houvesse uma agonia, no sentido original da palavra, ou seja, uma luta entre as forças de vida e as forças de morte. Alcançaremos um estado metamórfico da modernidade? ‘Metamorfose’ significa, simultaneamente, manutenção da identidade e transformação fundamental. É a lagarta que se transforma em borboleta após a fase de crisálida.”

Bento XVI preferiu o repouso a se transformar nessa “borboleta”. Ainda Morin:”...quando um sistema é incapaz de tratar seus problemas vitais (e não somente divinos; a digressão é minha) ou ele se desintegra, ou, em sua própria desintegração, é capaz de metamorfosear em um metassistema mais rico, hábil para tratar seus problemas... Já nos encontramos nos inícios de um caos. O caos pode ser destruidor, pode ser genésico, trata-se, talvez, da última oportunidade no último risco.”

Tenho sérias dúvidas que, nesses dias, os Cardeais Romanos tenham a sensibilidade, coragem, ousadia e vontade política de, aproveitar o grito de desespero de um homem que se recusou a ser Deus. Esperaria nesse momento, que o Congresso do Estado do Vaticano, seus representantes, antes de escolherem o próximo Pontífice, lessem, relessem e refletissem, em grupo, um dos maiores textos da Literatura Universal - O Grande Inquisidor, de Fíodor Dostoievski, em seu livro, “Os Irmãos Karamazov”. 

Um recorte do texto, caro leitor, deixo para reflexão: “...Não ignoravas, não podias ignorar este segredo fundamental da natureza humana e, contudo repeliste a única bandeira infalível que Te ofereciam e que teria curvado, sem contestação, todos os homens diante de Ti, a bandeira do pão terrestre; repeliste-a em nome do pão celeste e da liberdade. Vê o que fizeste depois, e sempre em nome da liberdade! Não há, torno a dizer-Te, anseio mais doloroso para o homem que o encontrar o mais cedo possível um ser a quem entregue este dom de liberdade que o desgraçado traz ao nascer. Mas, para dispor da liberdade dos homens, é necessário dar-lhes a paz da consciência.”

A grande contribuição de Dostoievski nesse texto, serve para o Conclave dos Cardeais: Não obriguem com suas leis divinas que a humanidade aspire ser “a imagem e a semelhança de Deus”, mas que haja consideração, respeito e liberdade para “ser humano”, com suas virtudes e fraqueza; genialidades e ignorância; amor e ódio; prazer e obediência; loucura e sanidade, sem ser excluída (a humanidade) para o Inferno, enquanto os que pensam serem Divinos aproveitam os prazeres da tirania, da divisão dos dízimos, da rigidez de pensamento.

Bento XVI, com sua renúncia, pode provocar uma abertura histórica do Estado Católico – devolver aos humanos, a sua humanidade e, tratá-los com respeito e consideração, dando a liberdade de comer “o pão da terra” e não o “pão celestial”.


Ao Papa Ratzinger, um poema de Bandeira:

Vontade de Morrer
“Não é que não me fales aos sentidos
Á inteligência , o instinto, o coração:
Falas demais até, e com tal suasão,
Que para não te ouvir selo os ouvidos.

Não é que sinta gastos e abolidos
Força e gosto de amar, nem haja a mão,
Na dos anos penosa sucessão,
Desaprendido os jogos aprendidos.

E ainda que tudo em mim murchado houvera,
Teu olhar saberia, senão quando,
Tudo alertar em nova primavera.

Sem ambições de amor ou de poder,
Nada peço nem quero e – entre nós – ando
Com uma grande vontade de morrer”.

*Carlos.A.Vieira, médico, psicanalista, Membro Efetivo da Sociedade de Psicanálise de Brasilia e de Recife. Membro da FEBRAPSI e da I.P.A - London.