Uma Vela para Dario
Conto de Dalton
Trevisan
Dario vinha apressado, guarda-chuva no braço esquerdo e, assim que dobrou a
esquina, diminuiu o passo até parar, encostando-se à parede de uma casa. Por
ela escorregando, sentou-se na calçada, ainda úmida de chuva, e descansou na
pedra o cachimbo. Dois ou três passantes rodearam-no e indagaram se não se
sentia bem. Dario abriu a boca, moveu os lábios, não se ouviu resposta. O
senhor gordo, de branco, sugeriu que devia sofrer de ataque.
Ele reclinou-se mais um pouco, estendido agora na calçada, e o cachimbo tinha
apagado. O rapaz de bigode pediu aos outros que se afastassem e o deixassem
respirar. Abriu-lhe o paletó, o colarinho, a gravata e a cinta. Quando lhe
retiraram os sapatos, Dario roncou feio e bolhas de espuma surgiram no canto da
boca.
Cada pessoa que chegava erguia-se na ponta dos pés, embora não o pudesse ver.
Os moradores da rua conversavam de uma porta à outra, as crianças foram
despertadas e de pijama acudiram à janela. O senhor gordo repetia que Dario
sentara-se na calçada, soprando ainda a fumaça do cachimbo e encostando o
guarda-chuva na parede. Mas não se via guarda-chuva ou cachimbo ao seu lado. A
velhinha de cabeça grisalha gritou que ele estava morrendo. Um grupo o arrastou
para o táxi da esquina. Já no carro a metade do corpo, protestou o motorista:
quem pagaria a corrida? Concordaram chamar a ambulância. Dario conduzido de
volta e recostado á parede - não tinha os sapatos nem o alfinete de pérola na
gravata.
Alguém informou da farmácia na outra rua. Não carregaram Dario além da esquina;
a farmácia no fim do quarteirão e, além do mais, muito pesado. Foi largado na
porta de uma peixaria. Enxame de moscas lhe cobriu o rosto, sem que fizesse um
gesto para espantá-las. Ocupado o café
próximo pelas pessoas que vieram apreciar o incidente e, agora, comendo e
bebendo, gozavam as delicias da noite. Dario ficou torto como o deixaram, no
degrau da peixaria, sem o relógio de pulso.
Um terceiro sugeriu que lhe examinassem os papéis, retirados - com vários
objetos - de seus bolsos e alinhados sobre a camisa branca. Ficaram sabendo do
nome, idade; sinal de nascença. O endereço na carteira era de outra cidade. Registrou-se
correria de mais de duzentos curiosos que, a essa hora, ocupavam toda a rua e
as calçadas: era a polícia. O carro negro investiu a multidão. Várias pessoas
tropeçaram no corpo de Dario, que foi pisoteado dezessete vezes.
O guarda aproximou-se do cadáver e não pôde identificá-lo — os bolsos vazios.
Restava a aliança de ouro na mão esquerda, que ele próprio quando vivo - só
podia destacar umedecida com sabonete. Ficou decidido que o caso era com o
rabecão.
A última boca repetiu — Ele morreu, ele morreu. A gente começou a se dispersar.
Dario levara duas horas para morrer, ninguém acreditou que estivesse no fim.
Agora, aos que podiam vê-lo, tinha todo o ar de um defunto.
Um senhor piedoso despiu o paletó de Dario para lhe sustentar a cabeça. Cruzou
as suas mãos no peito. Não pôde fechar os olhos nem a boca, onde a espuma tinha
desaparecido. Apenas um homem morto e a multidão se espalhou, as mesas do café
ficaram vazias. Na janela alguns moradores com almofadas para descansar os
cotovelos.
Um menino de cor e descalço veio com uma vela, que acendeu ao lado do cadáver.
Parecia morto há muitos anos, quase o retrato de um morto desbotado pela chuva.
Fecharam-se uma a uma as janelas e, três horas depois, lá estava Dario à espera
do rabecão. A cabeça agora na pedra, sem o paletó, e o dedo sem a aliança. A
vela tinha queimado até a metade e apagou-se às primeiras gotas da chuva, que
voltava a cair.
Texto extraído do livro "Vinte Contos Menores", Editora
Record – Rio de Janeiro, 1979, pág. 20.
Este
texto faz parte dos 100 melhores contos brasileiros do século, seleção de Ítalo
Moriconi para a Editora Objetiva.
Tudo
sobre o autor em nossa página "Biografias".
Dalton Trevisan
(O Vampiro de Curitiba)
"O que não me contam, eu escuto
atrás das portas. O que não sei,
adivinho e, com sorte, você adivinha sempre o que,
cedo ou tarde, acaba acontecendo."
" — Não vou responder às perguntas simplesmente porque não posso, é
verdade; sou arredio, ai de mim! Incurávelmente tímido (um pouco menos
com as loiras oxigenadas!)."
Já se
escreveu e se comprovou que os demais vampiros não podem encarar, sem pânico,
um crucifixo. Ou réstias de alho, água corrente cristalina... Dalton não
pode ver um jornalista. Vendo, foge, literalmente foge,
apavorado. Suas raras fotos surgidas na imprensa foram feitas às
escondidas, como a que utilizamos para ilustrar esta página.
Nascido em 14 de junho de 1925, o curitibano Dalton Jérson Trevisan sempre
foi enigmático. Antes de chegar ao grande público, quando ainda era estudante
de Direito, costumava lançar seus contos em modestíssimos folhetos. Em 1945
estreou-se com um livro de qualidade incomum, Sonata ao Luar, e,
no ano seguinte, publicou Sete Anos de Pastor. Dalton renega
os dois. Declara não possuir um exemplar sequer dos livros e
"felizmente já esqueci aquela barbaridade".
Entre 1946 e
1948, editou a revista Joaquim, "uma homenagem a todos os
Joaquins do Brasil". A publicação tornou-se porta-voz de uma geração de
escritores, críticos e poetas nacionais. Reunia ensaios assinados por Antonio
Cândido, Mario de Andrade e Otto Maria Carpeaux e poemas até então inéditos,
como O caso do vestido, de Carlos Drummond de Andrade. Além disso,
trazia traduções originais de Joyce, Proust, Kafka, Sartre e Gide e era
ilustrada por artistas como Poty, Di Cavalcanti e Heitor dos Prazeres.
Já nessa
época, Trevisan era avesso a fotografias e jamais dava
entrevistas. Em 1959, lançou o livro Novelas Nada Exemplares -
que reunia uma produção de duas décadas e recebeu o Prêmio Jabuti da Câmara
Brasileira do Livro - e conquistou o grande público. Acresce informar que o
escritor, arisco, águia, esquivo, não foi buscar o prêmio, enviando
representante. Escreveu, entre outros, Cemitério de elefantes, também
ganhador do Jabuti e do Prêmio Fernando Chinaglia, da União Brasileira dos
Escritores, Noites de Amor em Granada e Morte na praça,
que recebeu o Prêmio Luís Cláudio de Sousa, do Pen Club do Brasil. Guerra
conjugal, um de seus livros, foi transformado em filme em 1975. Suas obras
foram traduzidas para diversos idiomas: espanhol, inglês, alemão, italiano,
polonês e sueco.
Dedicando-se
exclusivamente ao conto (só teve um romance publicado: "A
Polaquinha"), Dalton Trevisan acabou se tornando o
maior mestre brasileiro no gênero. Em 1996, recebeu o Prêmio Ministério da
Cultura de Literatura pelo conjunto de sua obra. Mas Trevisan continua
recusando a fama. Cria uma atmosfera de suspense em torno de seu nome que o
transforma num enigmático personagem. Não cede o número do telefone, assina
apenas "D. Trevis" e não recebe visitas — nem mesmo de artistas
consagrados. Enclausura-se em casa de tal forma que mereceu o apelido de O
Vampiro de Curitiba, título de um de seus livros.
"O
"Nélsinho" dos contos originalíssimos e antológicos, é considerado
desde há muito "o maior contista moderno do Brasil por três quartos
da melhor crítica atuante". Incorrigível arredio, há bem mais de 35
anos, com com um prestígio incomum nas maiores capitais do
País. Trabalhador incansável, fidelíssimo ao conto, elabora até a exaustão
e a economia mais absoluta, formiguinha, chuvinha renitente e criadeira, a
ponto de chegar ao tamanho do haicai, Dalton Trevisan insiste ontem, hoje, em
Curitiba e trabalhando sobre as gentes curitibanas ("curitibocas",
vergasta-as com chibata impiedosa) e prossegue, com independência solene e
temperamento singular, na construção e dissecação da supra-realidade de luas,
crianças, amantes, velhos, cachorros e vampiros. E polaquinhas, deveras."
Em 2003,
divide com Bernardo Carvalho o maior prêmio literário do país — o 1º Prêmio
Portugal Telecom de Literatura Brasileira — com o livro "Pico na
Veia".
Livros
Publicados:
- Abismo
de Rosas
- Ah, É?
- A Faca No Coração
- A Guerra Conjugal
- A Polaquinha
- Arara Bêbada
- A Trombeta do Anjo Vingador
- Capitu Sou Eu
- Cemitério de Elefantes
- 111 Ais
- Chorinho Brejeiro
- Contos Eróticos
- Crimes de Paixão
- Desastres do Amor
- Dinorá - Novos Mistérios
- 234
- Em Busca de Curitiba Perdida
- Essas Malditas Mulheres
- Gente Em Conflito (com Antônio de Alcântara Machado)
- Lincha Tarado
- Meu Querido Assassino
- Morte na Praça
- Mistérios de Curitiba
- Noites de Amor em Granada
- Novelas nada Exemplares
- 99 Corruíras Nanicas
- O Grande Deflorador
- O Pássaro de Cinco Asas
- O Rei da Terra
- O Vampiro de Curitiba
- Pão e Sangue
- Pico na veia
- Primeiro Livro de Contos
- Quem tem medo de vampiro?
- 77Ais
- Vinte Contos Menores
- Virgem Louca, Loucos Beijos
- Vozes do Retrato - Quinze Histórias de Mentiras e Verdades
- Macho não ganha flor
(Todos os
livros publicados pela Editora Record - Rio de Janeiro, exceto "Vozes do
Retrato - Quinze Histórias de Mentiras e Verdades" e "Quem tem medo
de vampiro?", publicados pela Editora Ática - São Paulo, "77
Ais", impresso pelo autor em papel jornal; "O Grande Deflorador"
, "99 Curuíras Nanicas" e "111 Ais", L&PM - Porto
Alegre).
Livros
renegados pelo autor:
- Sonata
ao Luar
- Sete Anos de Pastor
(Primeiros
livros publicados, que o autor renega. Editores desconhecidos).
No
Exterior:
- Novela
Nada Ejemplares - trad. Juan Garcia Gayo, Monte Avila - Caracas
- The Vampire of Curitiba and Others Stories - trad. Gregory Rabassa, Alfred A.
Knopf, Nova Iorque
- De Koning Der Aarde (O Rei da Terra) - trad. August Willemsen, Amsterdam
- El Vampiro de Curitiba - trad. Haydée M.J.Barroso, Ed.Sudamericana - Buenos
Aires
- De Vijfvleugelige Voguel (O Pássaro de Cinco Asas) - trad. A. Willemsen,
Amsterdam
Antologias:
- Contos
em antologias alemãs (1967 e 1968), argentinas (1972 e 1978), americanas (1976
e 1977), polonesas (1976 e 1977), sueca (1963), venezuelana (1969),
dinamarquesa (1972) e portuguesa (1972).
Filmes:
- A
Guerra Conjugal - histórias e diálogos do autor, roteiro e direção de Joaquim
Pedro de Andrade, 1975.
Informações obtidas junto à página da Editora Record e artigos publicados pelo
jornal "O Estado de São Paulo", de autoria de José Paulo Paes e João
Antônio, em 20/07/96.