Lula e Chávez
Por
Luiz Inácio Lula da Silva
O presidente Hugo Chávez foi muito importante para
a América Latina e deixa um grande legado. A história registrará, com justiça,
o papel que ele desempenhou na integração latino-americana e sul-americana, e a
importância de seu governo para o povo pobre de seu país. Mas, antes que
a história se encarregue disso, é importante que tenhamos clareza da
importância de Chávez no cenário político nacional e internacional. Somente
assim poderemos definir as tarefas que se colocarão à nossa frente para que
avancemos e consolidemos os avanços obtidos nesta última década, agora
sem a ajuda de sua energia inesgotável e de sua convicção profunda no potencial
da integração dos países da América Latina e nas transformações sociais
necessárias no seu país para debelar a miséria de seu povo. Suas “misiones”
sociais, especialmente na área da saúde e da habitação popular, foram bem
sucedidas em melhorar as condições de vida de milhões de venezuelanos.
As pessoas não precisam concordar com tudo que
Chávez falava. Tenho que admitir que o presidente venezuelano era uma figura
polêmica, que não fugia ao debate e para o qual não existiam temas tabus. E
preciso admitir que, muitas vezes, eu achava que seria mais prudente que ele
não tentasse falar sobre tudo. Mas essa era uma característica pessoal de
Chávez que não deve, nem de longe, ofuscar as suas qualidades.
Pode-se também discordar ideologicamente de Chávez:
ele não fez opções políticas fáceis e tinha enorme convicção de suas
decisões.
Mas ninguém minimamente honesto pode desconhecer o
grau de companheirismo, de confiança e mesmo de amor que ele sentia pela causa
da integração da América Latina, pela integração da América do Sul e pelos
pobres da Venezuela. Poucos dirigentes e líderes políticos, dos muitos que
conheci em minha vida, acreditavam tanto na construção da unidade sul-americana
e latino-americana como ele.
Junto com Chávez criamos a Unasul (União de Nações
Sul-Americanas), que integra 12 países do continente. Em 2010, a Comunidade dos
Estados Latino-americanos e Caribenhos (Celac) saiu do papel e ganhou forma
jurídica – e isso não teria sido possível sem o empenho de Chávez. O Banco do
Sul, um banco de desenvolvimento da Unasul, não seria possível sem a
participação do líder venezuelano. Foi junto com ele também que conseguimos
formar a Cúpula América do Sul-África (ASA) e a Cúpula América do Sul-Oriente
Médio.
Por isso mesmo que a contribuição de Chávez ao seu
país e ao projeto de integração da América do Sul e da América Latina não se
extinguirá com sua morte. Se um homem público morre sem deixar ideias, quando o
seu corpo físico acaba, acaba o homem. Não é o caso de Chávez, que foi uma
figura tão forte que suas ideias permanecerão discutidas nas academias, nos
sindicatos, nos partidos políticos e em qualquer lugar que exista uma pessoa
preocupada com a justiça social e com a igualdade de poder entre os povos no cenário
internacional. E talvez venham a inspirar outros jovens no futuro, como a vida
do herói da independência Simon Bolívar inspirou o próprio Chávez.
Isso no campo das ideias.
No cenário político onde essas ideias são
debatidas, disputadas e podem virar realidade, todavia, ficar sem Chávez
exigirá empenho e vontade para que os ideais do líder venezuelano não sejam
lembrados, no futuro, apenas no papel.
Na Venezuela, os simpatizantes de Chávez, para
manter o seu legado, vão ter pela frente um trabalho de construção de
institucionalidades. Terão que trabalhar para dar mais organicidade ao sistema
político, tornar o poder mais plural, conversar com outras forças e fortalecer
sindicatos e partidos. A unidade do país dependerá desse esforço.
É preciso garantir as conquistas obtidas até agora.
Essa é, sem dúvida, a aspiração de todos os venezuelanos, sejam eles de
oposição ou de situação, militares ou civis, católicos ou evangélicos, ricos ou
pobres… Todos precisam compreender que somente a paz e a democracia vão
permitir que se realize o potencial de um país tão promissor quanto a
Venezuela.
É preciso garantir instituições multilaterais
fortes para garantir definitivamente a consagração da unidade da América do
Sul. Chávez não estará nas reuniões de cúpula sul-americanas, mas seus ideais e
o governo venezuelano lá estarão. A convivência democrática na diversidade dos
líderes dos governos da América do Sul e Latina, é a certeza da
construção da unidade política, econômica, social e cultural da América do Sul
e da América Latina, que tanto precisamos. Um caminho sem retorno. E, quanto
mais fortes formos, mais teremos força para negociar a nossa participação da
América do Sul nos fóruns internacionais, e sobretudo, para democratizar os
órgãos multilaterais, como a ONU, o Banco Mundial e o FMI, que ainda respondem
à realidade internacional do fim da Segunda Guerra Mundial e não ao mundo de
hoje.
Certamente Chávez fará falta. Ele era uma figura
muito forte e ímpar, capaz de fazer amizades e se comunicar como poucos
líderes. Precisamos ter a sabedoria de tirar da passagem dele pela Terra e pelo
governo da Venezuela as contribuições que podem resultar na consagração da
unidade latino-americana. E tenho a certeza de que todos os governantes da
região farão um grande esforço para que isso aconteça.
Carismático e idiossincrático, capaz de fazer
amigos com facilidade e de se comunicar com as massas como poucos outros
líderes, Chávez vai fazer falta. Eu, pessoalmente, guardarei para sempre a
relação de amizade e parceria que durante os oito anos em que trabalhamos
juntos como presidentes, produziu tantos benefícios para o Brasil e para a
Venezuela e para os povos de nossos países.