Kabengele Munanga
O
antropólogo Kabengele Munanga fala sobre o mito da democracia racial
brasileira, a polêmica com Demétrio Magnoli e o papel da mídia e da educação no
combate ao preconceito no país (09/02/2012)
Por
Camila Souza Ramos e Glauco Faria – Fonte: Revista Fórum
Fórum
– O senhor veio do antigo Zaire que, apesar de ter alguns pontos de contato com
a cultura brasileira e a cultura do Congo, é um país bem diferente. O senhor
sentiu, quando veio pra cá, a questão racial? Como foi essa mudança para o
senhor?
Kabengele
– Essas coisas não são tão abertas como a gente pensa. Cheguei aqui em 1975,
diretamente para a USP, para fazer doutorado. Não se depara com o preconceito à
primeira vista, logo que sai do aeroporto. Essas coisas vêm pouco a pouco,
quando se começa a descobrir que você entra em alguns lugares e percebe que é
único, que te olham e já sabem que não é daqui, que não é como “nossos negros”,
é diferente. Poderia dizer que esse estranhamento é por ser estrangeiro, mas
essa comparação na verdade é feita em relação aos negros da terra, que não
entram em alguns lugares ou não entram de cabeça erguida.
Depois,
com o tempo, na academia, fiz disciplinas em antropologia e alguns de meus
professores eram especialistas na questão racial. Foi através da academia, da
literatura, que comecei a descobrir que havia problemas no país. Uma das
primeiras aulas que fiz foi em 1975, 1976, já era uma disciplina sobre a
questão racial com meu orientador João Batista Borges Pereira. Depois, com o
tempo, você vai entrar em algum lugar em que está sozinho e se pergunta: onde
estão os outros? As pessoas olhavam mesmo, inclusive olhavam mais quando eu
entrava com minha mulher e meus filhos. Porque é uma família inter-racial: a
mulher branca, o homem negro, um filho negro e um filho mestiço. Em todos os
lugares em que a gente entrava, era motivo de curiosidade. O pessoal tentava
ser discreto, mas nem sempre escondia. Entrávamos em lugares onde geralmente os
negros não entram.
A
partir daí você começa a buscar uma explicação para saber o porquê e se
aproxima da literatura e das aulas da universidade que falam da discriminação
racial no Brasil, os trabalhos de Florestan Fernandes, do Otavio Ianni, do meu
próprio orientador e de tantos outros que trabalharam com a questão. Mas o
problema é que quando a pessoa é adulta sabe se defender, mas as crianças não.
Tenho dois filhos que nasceram na Bélgica, dois no Congo e meu caçula é
brasileiro. Quantas vezes, quando estavam sozinhos na rua, sem defesa, se
depararam com a polícia?
Meus
filhos estudaram em escola particular, Colégio Equipe, onde estudavam filhos de
alguns colegas professores. Eu não ia buscá-los na escola, e quando saíam para
tomar ônibus e voltar para casa com alguns colegas que eram brancos, eles eram
os únicos a ser revistados. No entanto, a condição social era a mesma e
estudavam no mesmo colégio. Por que só eles podiam ser suspeitos e revistados
pela polícia? Essa situação eu não posso contar quantas vezes vi acontecer.
Lembro que meu filho mais velho, que hoje é ator, quando comprou o primeiro
carro dele, não sei quantas vezes ele foi parado pela polícia. Sempre apontando
a arma para ele para mostrar o documento. Ele foi instruído para não discutir e
dizer que os documentos estão no porta-luvas, senão podem pensar que ele vai
sacar uma arma. Na realidade, era suspeito de ser ladrão do próprio carro que
ele comprou com o trabalho dele. Meus filhos até hoje não saem de casa para
atravessar a rua sem documento. São adultos e criaram esse hábito, porque até
você provar que não é ladrão… A geografia do seu corpo não indica isso.
Então,
essa coisa de pensar que a diferença é simplesmente social, é claro que o
social acompanha, mas e a geografia do corpo? Isso aqui também vai junto com o
social, não tem como separar as duas coisas. Fui com o tempo respondendo à questão,
por meio da vivência, com o cotidiano e as coisas que aprendi na universidade,
depoimentos de pessoas da população negra, e entendi que a democracia racial é
um mito. Existe realmente um racismo no Brasil, diferenciado daquele praticado
na África do Sul durante o regime do apartheid, diferente também do racismo
praticado nos EUA, principalmente no Sul. Porque nosso racismo é, utilizando
uma palavra bem conhecida, sutil. Ele é velado. Pelo fato de ser sutil e velado
isso não quer dizer que faça menos vítimas do que aquele que é aberto. Faz
vítimas de qualquer maneira.
Revista
Fórum – Quando você tem um sistema como o sul-africano ou um sistema de
restrição de direitos como houve nos EUA, o inimigo está claro. No caso
brasileiro é mais difícil combatê-lo…
Kabengele
– Claro, é mais difícil. Porque você não identifica seu opressor. Nos EUA era
mais fácil porque começava pelas leis. A primeira reivindicação: o fim das leis
racistas. Depois, se luta para implementar políticas públicas que busquem a
promoção da igualdade racial. Aqui é mais difícil, porque não tinha lei nem pra
discriminar, nem pra proteger. As leis pra proteger estão na nova Constituição
que diz que o racismo é um crime inafiançável. Antes disso tinha a lei Afonso
Arinos, de 1951. De acordo com essa lei, a prática do racismo não era um crime,
era uma contravenção. A população negra e indígena viveu muito tempo sem leis
nem para discriminar nem para proteger.
Revista
Fórum – Aqui no Brasil há mais dificuldade com relação ao sistema de cotas
justamente por conta do mito da democracia racial?
Kabengele
– Tem segmentos da população a favor e contra. Começaria pelos que estão contra
as cotas, que apelam para a própria Constituição, afirmando que perante a lei
somos todos iguais. Então não devemos tratar os cidadãos brasileiros
diferentemente, as cotas seriam uma inconstitucionalidade. Outro argumento
contrário, que já foi demolido, é a ideia de que seria difícil distinguir os
negros no Brasil para se beneficiar pelas cotas por causa da mestiçagem. O
Brasil é um país de mestiçagem, muitos brasileiros têm sangue europeu, além de
sangue indígena e africano, então seria difícil saber quem é afro-descendente
que poderia ser beneficiado pela cota. Esse argumento não resistiu. Por quê?
Num país onde existe discriminação antinegro, a própria discriminação é a prova
de que é possível identificar os negros. Senão não teria discriminação.
Em
comparação com outros países do mundo, o Brasil é um país que tem um índice de
mestiçamento muito mais alto. Mas isso não pode impedir uma política, porque
basta a autodeclaração. Basta um candidato declarar sua afro-descendência. Se
tiver alguma dúvida, tem que averiguar. Nos casos-limite, o indivíduo se
autodeclara afrodescendente. Às vezes, tem erros humanos, como o que aconteceu
na UnB, de dois jovens mestiços, de mesmos pais, um entrou pelas cotas porque
acharam que era mestiço, e o outro foi barrado porque acharam que era branco.
Isso são erros humanos. Se tivessem certeza absoluta que era afro-descendente,
não seria assim. Mas houve um recurso e ele entrou. Esses casos-limite existem,
mas não é isso que vai impedir uma política pública que possa beneficiar uma
grande parte da população brasileira.
Além
do mais, o critério de cota no Brasil é diferente dos EUA. Nos EUA, começaram
com um critério fixo e nato. Basta você nascer negro. No Brasil não. Se a gente
analisar a história, com exceção da UnB, que tem suas razões, em todas as
universidades brasileiras que entraram pelo critério das cotas, usaram o
critério étnico-racial combinado com o critério econômico. O ponto de partida é
a escola pública. Nos EUA não foi isso. Só que a imprensa não quer enxergar,
todo mundo quer dizer que cota é simplesmente racial. Não é. Isso é mentira,
tem que ver como funciona em todas as universidades. É necessário fazer um
certo controle, senão não adianta aplicar as cotas. No entanto, se mantém a
ideia de que, pelas pesquisas quantitativas, do IBGE, do Ipea, dos índices do
Pnud, mostram que o abismo em matéria de educação entre negros e brancos é
muito grande. Se a gente considerar isso então tem que ter uma política de
mudança. É nesse sentido que se defende uma política de cotas.
O
racismo é cotidiano na sociedade brasileira. As pessoas que estão contra cotas
pensam como se o racismo não tivesse existido na sociedade, não estivesse
criando vítimas. Se alguém comprovar que não tem mais racismo no Brasil, não
devemos mais falar em cotas para negros. Deveríamos falar só de classes
sociais. Mas como o racismo ainda existe, então não há como você tratar
igualmente as pessoas que são vítimas de racismo e da questão econômica em
relação àquelas que não sofrem esse tipo de preconceito. A própria pesquisa do
IPEA mostra que se não mudar esse quadro, os negros vão levar muitos e muitos
anos para chegar aonde estão os brancos em matéria de educação. Os que são
contra cotas ainda dão o argumento de que qualquer política de diferença por
parte do governo no Brasil seria uma política de reconhecimento das raças e
isso seria um retrocesso, que teríamos conflitos, como os que aconteciam nos
EUA.
Fórum
– Que é o argumento do Demétrio Magnoli.
Kabengele
– Isso é muito falso, porque já temos a experiência, alguns falam de mais de 70
universidades públicas, outros falam em 80. Já ouviu falar de conflitos raciais
em algum lugar, linchamentos raciais? Não existe. É claro que houve
manifestações numa universidade ou outra, umas pichações, “negro, volta pra
senzala”. Mas isso não se caracteriza como conflito racial. Isso é uma maneira
de horrorizar a população, projetar conflitos que na realidade não vão existir.
Fórum
– Agora o DEM entrou com uma ação no STF pedindo anulação das cotas. O que
motiva um partido como o DEM, qual a conexão entre a ideologia de um partido ou
um intelectual como o Magnoli e essa oposição ao sistema de cotas? Qual é a
raiz dessa resistência?
Kabengele
– Tenho a impressão que as posições ideológicas não são explícitas, são
implícitas. A questão das cotas é uma questão política. Tem pessoas no Brasil
que ainda acreditam que não há racismo no país. E o argumento desse deputado do
DEM é esse, de que não há racismo no Brasil, que a questão é simplesmente
socioeconômica. É um ponto de vista refutável, porque nós temos provas de que
há racismo no Brasil no cotidiano. O que essas pessoas querem? Status quo. A
ideia de que o Brasil vive muito bem, não há problema com ele, que o problema é
só com os pobres, que não podemos introduzir as cotas porque seria introduzir
uma discriminação contra os brancos e pobres. Mas eles ignoram que os brancos e
pobres também são beneficiados pelas cotas, e eles negam esse argumento
automaticamente, deixam isso de lado.
Fórum
– Mas isso não é um cinismo de parte desses atores políticos, já que eles são
contra o sistema de cotas, mas também são contra o Bolsa-Família ou qualquer
tipo de política compensatória no campo socioeconômico?
Kabengele
– É interessante, porque um país que tem problemas sociais do tamanho do Brasil
deveria buscar caminhos de mudança, de transformação da sociedade. Cada vez que
se toca nas políticas concretas de mudança, vem um discurso. Mas você não
resolve os problemas sociais somente com a retórica. Quanto tempo se fala da
qualidade da escola pública? Estou aqui no Brasil há 34 anos. Desde que cheguei
aqui, a escola pública mudou em algum lugar? Não, mas o discurso continua. “Ah,
é só mudar a escola pública.” Os mesmos que dizem isso colocam os seus filhos
na escola particular e sabem que a escola pública é ruim. Poderiam eles, como
autoridades, dar melhor exemplo e colocar os filhos deles em escola pública e
lutar pelas leis, bom salário para os educadores, laboratórios, segurança. Mas
a coisa só fica no nível da retórica.
E
tem esse argumento legalista, “porque a cota é uma inconstitucionalidade,
porque não há racismo no Brasil”. Há juristas que dizem que a igualdade da qual
fala a Constituição é uma igualdade formal, mas tem a igualdade material. É
essa igualdade material que é visada pelas políticas de ação afirmativa. Não
basta dizer que somos todos iguais. Isso é importante, mas você tem que dar os
meios e isso se faz com as políticas públicas. Muitos disseram que as cotas nas
universidades iriam atingir a excelência universitária. Está comprovado que os
alunos cotistas tiveram um rendimento igual ou superior aos outros. Então a
excelência não foi prejudicada. Aliás, é curioso falar de mérito como se nosso
vestibular fosse exemplo de democracia e de mérito. Mérito significa
simplesmente que você coloca como ponto de partida as pessoas no mesmo nível.
Quando
as pessoas não são iguais, não se pode colocar no ponto de partida para
concorrer igualmente. É como você pegar uma pessoa com um fusquinha e outro com
um Mercedes, colocar na mesma linha de partida e ver qual o carro mais veloz. O
aluno que vem da escola pública, da periferia, de péssima qualidade, e o aluno
que vem de escola particular de boa qualidade, partindo do mesmo ponto, é claro
que os que vêm de uma boa escola vão ter uma nota superior. Se um aluno que vem
de um Pueri Domus, Liceu Pasteur, tira nota 8, esse que vem da periferia e
tirou nota 5 teve uma caminhada muito longa. Essa nota 5 pode ser mais
significativa do que a nota 7 ou 8. Dando oportunidade ao aluno, ele não vai
decepcionar.
Foi
isso que aconteceu, deram oportunidade. As cotas são aplicadas desde 2003.
Nestes sete anos, quantos jovens beneficiados pelas cotas terminaram o curso
universitário e quantos anos o Brasil levaria para formar o tanto de negros sem
cotas? Talvez 20 ou mais. Isso são coisas concretas para as quais as pessoas
fecham os olhos. No artigo do professor Demétrio Magnoli, ele me critica, mas
não leu nada. Nem uma linha de meus livros. Simplesmente pegou o livro da
Eneida de Almeida dos Santos, Mulato, negro não-negro e branco não-branco que
pediu para eu fazer uma introdução, e desta introdução de três páginas ele
tirou algumas frases e, a partir dessas frases, me acusa de ser um charlatão
acadêmico, de professar o racismo científico abandonado há mais de um século e
fazer parte de um projeto de racialização oficial do Brasil. Nunca leu nada do
que eu escrevi.
A
autora do livro é mestiça, psiquiatra e estuda a dificuldade que os mestiços
entre branco e negro têm pra construir a sua identidade. Fiz a introdução mostrando
que eles têm essa dificuldade justamente por causa de serem negros não-negros e
brancos não-brancos. Isso prejudica o processo, mas no plano político,
jurídico, eles não podem ficar ambivalentes. Eles têm que optar por uma
identidade, têm que aceitar sua negritude, e não rejeitá-la. Com isso ele acha
que eu estou professando a supressão dos mestiços no Brasil e que isso faz
parte do projeto de racialização do brasileiro. Não tinha nada para me acusar,
soube que estou defendendo as cotas, tirou três frases e fez a acusação dele no
jornal.
Fórum
– O senhor toca na questão do imaginário da democracia racial, mas as pessoas
são formadas para aceitarem esse mito…
Kabengele
– O racismo é uma ideologia. A ideologia só pode ser reproduzida se as próprias
vítimas aceitam, a introjetam, naturalizam essa ideologia. Além das próprias
vítimas, outros cidadãos também, que discriminam e acham que são superiores aos
outros, que têm direito de ocupar os melhores lugares na sociedade. Se não
reunir essas duas condições, o racismo não pode ser reproduzido como ideologia,
mas toda educação que nós recebemos é para poder reproduzi-la.
Há
negros que introduziram isso, que alienaram sua humanidade, que acham que são
mesmo inferiores e o branco tem todo o direito de ocupar os postos de comando.
Como também tem os brancos que introjetaram isso e acham mesmo que são
superiores por natureza. Mas para você lutar contra essa ideia não bastam as
leis, que são repressivas, só vão punir. Tem que educar também. A educação é um
instrumento muito importante de mudança de mentalidade e o brasileiro foi
educado para não assumir seus preconceitos. O Florestan Fernandes dizia que um
dos problemas dos brasileiros é o “preconceito de ter preconceito de ter
preconceito”. O brasileiro nunca vai aceitar que é preconceituoso. Foi educado
para não aceitar isso. Como se diz, na casa de enforcado não se fala de corda.
Quando
você está diante do negro, dizem que tem que dizer que é moreno, porque se
disser que é negro, ele vai se sentir ofendido. O que não quer dizer que ele
não deve ser chamado de negro. Ele tem nome, tem identidade, mas quando se fala
dele, pode dizer que é negro, não precisa branqueá-lo, torná-lo moreno. O
brasileiro foi educado para se comportar assim, para não falar de corda na casa
de enforcado. Quando você pega um brasileiro em flagrante de prática racista,
ele não aceita, porque não foi educado para isso. Se fosse um americano, ele
vai dizer: “Não vou alugar minha casa para um negro”. No Brasil, vai dizer:
“Olha, amigo, você chegou tarde, acabei de alugar”. Porque a educação que o
americano recebeu é pra assumir suas práticas racistas, pra ser uma coisa
explícita.
Quando
a Folha de S. Paulo fez aquela pesquisa de opinião em 1995, perguntaram para
muitos brasileiros se existe racismo no Brasil. Mais de 80% disseram que sim.
Perguntaram para as mesmas pessoas: “você já discriminou alguém?”. A maioria
disse que não. Significa que há racismo, mas sem racistas. Ele está no ar… Como
você vai combater isso? Muitas vezes o brasileiro chega a dizer ao negro que
reage: “você que é complexado, o problema está na sua cabeça”. Ele rejeita a
culpa e coloca na própria vítima. Já ouviu falar de crime perfeito? Nosso
racismo é um crime perfeito, porque a própria vítima é que é responsável pelo
seu racismo, quem comentou não tem nenhum problema.
Revista
Fórum – O humorista Danilo Gentilli escreveu no Twitter uma piada a respeito do
King Kong, comparando com um jogador de futebol que saía com loiras. Houve uma
reação grande e a continuação dos argumentos dele para se justificar vai ao
encontro disso que o senhor está falando. Ele dizia que racista era quem
acusava ele, e citava a questão do orgulho negro como algo de quem é racista.
Kabengele
– Faz parte desse imaginário. O que está por trás dessa ilustração de King
Kong, que ele compara a um jogador de futebol que vai casar com uma loira, é a
ideia de alguém que ascende na vida e vai procurar sua loira. Mas qual é o
problema desse jogador de futebol? São pessoas vítimas do racismo que acham que
agora ascenderam na vida e, para mostrar isso, têm que ter uma loira que era
proibida quando eram pobres? Pode até ser uma explicação. Mas essa loira não é
uma pessoa humana que pode dizer não ou sim e foi obrigada a ir com o King Kong
por causa de dinheiro? Pode ser, quantos casamentos não são por dinheiro na
nossa sociedade? A velha burguesia só se casa dentro da velha burguesia. Mas
sempre tem pessoas que desobedecem as normas da sociedade.
Essas
jovens brancas, loiras, também pulam a cerca de suas identidades pra casar com
um negro jogador. Por que a corda só arrebenta do lado do jogador de futebol?
No fundo, essas pessoas não querem que os negros casem com suas filhas. É uma
forma de racismo. Estão praticando um preconceito que não respeita a vontade
dessas mulheres nem essas pessoas que ascenderam na vida, numa sociedade onde o
amor é algo sem fronteiras, e não teria tantos mestiços nessa sociedade. Com
tudo o que aconteceu no campo de futebol com aquele jogador da Argentina que
chamou o Grafite de macaco, com tudo o que acontece na Europa, esse humorista
faz uma ilustração disso, ou é uma provocação ou quer reafirmar os preconceitos
na nossa sociedade.
Fórum
– É que no caso, o Danilo Gentili ainda justificou sua piada com um argumento
muito simplório: “por que eu posso chamar um gordo de baleia e um negro de
macaco”, como se fosse a mesma coisa.
Kabengele
– É interessante isso, porque tenho a impressão de que é um cara que não
conhece a história e o orgulho negro tem uma história. São seres humanos que,
pelo próprio processo de colonização, de escravidão, a essas pessoas foi negada
sua humanidade. Para poder se recuperar, ele tem que assumir seu corpo como
negro. Se olhar no espelho e se achar bonito ou se achar feio. É isso o orgulho
negro. E faz parte do processo de se assumir como negro, assumir seu corpo que
foi recusado. Se o humorista conhecesse isso, entenderia a história do orgulho
negro. O branco não tem motivo para ter orgulho branco porque ele é vitorioso,
está lá em cima. O outro que está lá em baixo que deve ter orgulho, que deve
construir esse orgulho para poder se reerguer.
Fórum
– O senhor tocou no caso do Grafite com o Desábato, e recentemente tivemos, no
jogo da Libertadores entre Cruzeiro e Grêmio, o caso de um jogador que teria
sido chamado de macaco por outro atleta. Em geral, as pessoas – jornalistas que
comentaram, a diretoria gremista – argumentavam que no campo de futebol você
pode falar qualquer coisa, e que se as pessoas fossem se importar com isso, não
teria como ter jogo de futebol. Como você vê esse tipo de situação?
Kabengele
– Isso é uma prova daquilo que falei, os brasileiros são educados para não
assumir seus hábitos, seu racismo. Em outros países, não teria essa conversa de
que no campo de futebol vale. O pessoal pune mesmo. Mas aqui, quando se trata
do negro… Já ouviu caso contrário, de negro que chama branco de macaco? Quando
aquele delegado prendeu o jogador argentino no caso do Grafite, todo mundo caiu
em cima. Os técnicos, jornalistas, esportistas, todo mundo dizendo que é assim no
futebol. Então a gente não pode educar o jogador de futebol, tudo é permitido?
Quando há violência física, eles são punidos, mas isso aqui é uma violência
também, uma violência simbólica. Por que a violência simbólica é aceita a
violência física é punida?
Fórum
– Como o senhor vê hoje a aplicação da lei que determina a obrigatoriedade do
ensino de cultura africana nas escolas? Os professores, de um modo geral, estão
preparados para lidar com a questão racial?
Kabengele
– Essa lei já foi objeto de crítica das pessoas que acham que isso também seria
uma racialização do Brasil. Pessoas que acham que, sendo a população brasileira
uma população mestiça, não é preciso ensinar a cultura do negro, ensinar a
história do negro ou da África. Temos uma única história, uma única cultura,
que é uma cultura mestiça. Tem pessoas que vão nessa direção, pensam que isso é
uma racialização da educação no Brasil.
Mas
essa questão do ensino da diversidade na escola não é propriedade do Brasil.
Todos os países do mundo lidam com a questão da diversidade, do ensino da
diversidade na escola, até os que não foram colonizadores, os nórdicos, com a
vinda dos imigrantes, estão tratando da questão da diversidade na escola.
O
Brasil deveria tratar dessa questão com mais força, porque é um país que nasceu
do encontro das culturas, das civilizações. Os europeus chegaram, a população
indígena – dona da terra – os africanos, depois a última onda imigratória é dos
asiáticos. Então tudo isso faz parte das raízes formadoras do Brasil que devem
fazer parte da formação do cidadão. Ora, se a gente olhar nosso sistema
educativo, percebemos que a história do negro, da África, das populações
indígenas não fazia parte da educação do brasileiro.
Nosso
modelo de educação é eurocêntrico. Do ponto de vista da historiografia oficial,
os portugueses chegaram na África, encontraram os africanos vendendo seus
filhos, compraram e levaram para o Brasil. Não foi isso que aconteceu. A
história da escravidão é uma história da violência. Quando se fala de
contribuições, nunca se fala da África. Se se introduzir a história do outro de
uma maneira positiva, isso ajuda.
É
por isso que a educação, a introdução da história dele no Brasil, faz parte
desse processo de construção do orgulho negro. Ele tem que saber que foi trazido
e aqui contribuiu com o seu trabalho, trabalho escravizado, para construir as
bases da economia colonial brasileira. Além do mais, houve a resistência, o
negro não era um João-Bobo que simplesmente aceitou, senão a gente não teria
rebeliões das senzalas, o Quilombo dos Palmares, que durou quase um século. São
provas de resistência e de defesa da dignidade humana. São essas coisas que
devem ser ensinadas. Isso faz parte do patrimônio histórico de todos os
brasileiros. O branco e o negro têm que conhecer essa história porque é aí que
vão poder respeitar os outros.
Voltando
a sua pergunta, as dificuldades são de duas ordens. Em primeiro lugar, os
educadores não têm formação para ensinar a diversidade. Estudaram em escolas de
educação eurocêntrica, onde não se ensinava a história do negro, não estudaram
história da África, como vão passar isso aos alunos? Além do mais, a África é
um continente, com centenas de culturas e civilizações. São 54 países
oficialmente. A primeira coisa é formar os educadores, orientar por onde
começou a cultura negra no Brasil, por onde começa essa história. Depois dessa
formação, com certo conteúdo, material didático de boa qualidade, que nada tem
a ver com a historiografia oficial, o processo pode funcionar.
Fórum
– Outra questão que se discute é sobre o negro nos espaços de poder. Não se
veem negros como prefeitos, governadores. Como trabalhar contra isso?
Kabengele
– O que é um país democrático? Um país democrático, no meu ponto de vista, é um
país que reflete a sua diversidade na estrutura de poder. Nela, você vê
mulheres ocupando cargos de responsabilidade, no Executivo, no Legislativo, no
Judiciário, assim como no setor privado. E ainda os índios, que são os grandes
discriminados pela sociedade. Isso seria um país democrático. O fato de você
olhar a estrutura de poder e ver poucos negros ou quase não ver negros, não ver
mulheres, não ver índios, isso significa que há alguma coisa que não foi feita
nesse país. Como construção da democracia, a representatividade da diversidade
não existe na estrutura de poder. Por quê?
Se
você fizer um levantamento no campo jurídico, quantos desembargadores e juízes
negros têm na sociedade brasileira? Se você for pras universidades públicas,
quantos professores negros tem, começando por minha própria universidade? Esta
universidade tem cerca de 5 mil professores. Quantos professores negros tem na
USP? Nessa grande faculdade, que é a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas (FFLCH), uma das maiores da USP junto com a Politécnica, tenho certeza
de que na minha faculdade fui o primeiro negro a entrar como professor. Desde
que entrei no Departamento de Antropologia, não entrou outro. Daqui três anos
vou me aposentar. O professor Milton Santos, que era um grande professor, quase
Nobel da Geografia, entrou no departamento, veio do exterior e eu já estava
aqui. Em toda a USP, não sou capaz de passar de dez pessoas conhecidas. Pode
ter mais, mas não chega a 50, exagerando. Se você for para as grandes
universidades americanas, Harvard, Princeton, Standford, você vai encontrar
mais negros professores do que no Brasil. Lá eles são mais racistas, ou eram
mais racistas, mas como explicar tudo isso?
120
anos de abolição. Por que não houve uma certa mobilidade social para os negros
chegarem lá? Há duas explicações: ou você diz que ele é geneticamente menos
inteligente, o que seria uma explicação racista, ou encontra explicação na
sociedade. Quer dizer que se bloqueou a sua mobilidade. E isso passa por
questão de preconceito, de discriminação racial. Não há como explicar isso. Se
você entender que os imigrantes japoneses chegaram, nós comemoramos 100 anos
recentemente da sua vinda, eles tiveram uma certa mobilidade.
Os coreanos
também ocupam um lugar na sociedade. Mas os negros já estão a 120 anos da
abolição. Então tem uma explicação. Daí a necessidade de se mudar o quadro. Ou
nós mantemos o quadro, porque se não mudamos estamos racializando o Brasil, ou
a gente mantém a situação para mostrar que não somos racistas. Porque a
explicação é essa, se mexer, somos racistas e estamos racializando. Então vamos
deixar as coisas do jeito que estão. Esse é o dilema da sociedade.
Revista
Fórum – como o senhor vê o tratamento dado pela mídia à questão racial?
Kabengele
– A imprensa faz parte da sociedade. Acho que esse discurso do mito da
democracia racial é um discurso também que é absorvido por alguns membros da
imprensa. Acho que há uma certa tendência na imprensa pelo fato de ser contra
as políticas de ação afirmativa, sendo que também não são muito favoráveis a
essa questão da obrigatoriedade do ensino da história do negro na escola.
Houve,
no mês passado, a II Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial.
Silêncio completo da imprensa brasileira. Não houve matérias sobre isso. Os
grandes jornais da imprensa escrita não pautaram isso. O silêncio faz parte do
dispositivo do racismo brasileiro. Como disse Elie Wiesel, o carrasco mata
sempre duas vezes. A segunda mata pelo silêncio. O silêncio é uma maneira de
você matar a consciência de um povo. Porque se falar sobre isso abertamente, as
pessoas vão buscar saber, se conscientizar, mas se ficar no silêncio a coisa
morre por aí. Então acho que o silêncio da imprensa, no meu ponto de vista,
passa por essa estratégia, é o não-dito.
Acabei
de passar por uma experiência interessante. Saí da Conferência Nacional e fui
para Barcelona, convidado por um grupo de brasileiros que pratica capoeira.
Claro, receberam recursos do Ministério das Relações Exteriores, que pagou
minha passagem e a estadia. Era uma reunião pequena de capoeiristas e fiz uma
conferência sobre a cultura negra no Brasil. Saiu no El Pais, que é o jornal
mais importante da Espanha, noticiou isso, uma coisa pequena. Uma conferência
nacional deste tamanho aqui não se fala. É um contrassenso. O silêncio da
imprensa não é um silêncio neutro, é um silêncio que indica uma certa
orientação da questão racial. Tem que não dizer muita coisa e ficar calado.
Amanhã não se fala mais, acabou.