Manif na Ucrânia
Fonte: Carta Maior
Na
Ucrânia houve de tudo, menos uma revolução popular.
Tudo
começou com uma série de manifestação empilhadas umas sobre as outras: uma
juventude ansiosa por se identificar com a União Europeia, uma classe média
cansada pelas sucessivas vagas de corrupção dos sucessivos governos, uma
insatisfação com o autoritarismo e o fechamento do governo de Viktor
Yanukovitch, o desejo de maior ascendência de grupos do oeste do país em
detrimento de grupos do leste do país.
A
repressão que o governo desencadeou abriu caminho para uma intensificação do
descontentamento, açulado pelos partidos de oposição representados no
Parlamento e pelo encorajamento
internacional – da União Europeia a políticos norte-americanos, republicanos e
democratas. De todos os mais animado foi
o senador republicano John McCain, em dezembro, gritando na praça da Independência
(Maidan), foco e espaço das concentrações: “O mundo livre está com vocês! A
América está com vocês!” Melhor lembrança da Guerra Fria e do dito “A América
para os [norte-]americanos” seriam impossível. Como nos velhos “bons” tempos, o
alvo continua sendo a Rússia.
No
pano de fundo destas confrontações estão as desigualdades do país. O leste e o
sul – junto à Rússia e ao Mar Negro são mais desenvolvidos e industrializados
do que o oeste, mais pobre. O leste, de um modo geral, tem seu foco econômico
voltado para a vizinha Rússia, de que depende o abastecimento de gás do país,
vital para a indústria e para o aquecimento durante o rigoroso inverno. Se a
Rússia endurecer a questão do fornecimento de gás, cortando-o ou simplesmente
cobrando o preço de mercado, a Ucrânia literalmente congela – em todos os
sentidos. Entretanto para o oeste, mais
próximo da União Europeia, a aproximação com esta significaria em tese
uma maior autonomia em relação ao governo central e às demais regiões do país,
além de mais oportunidades de colher investimentos. Pelo menos em tese.
Há
também a questão do histórico repúdio aos russos, maior no oeste, um repúdio
cujas últimas e trágicas edições foram uma relação ambígua – para dizer o
mínimo – de movimentos nacionalistas ucranianos com o regime nazista da
Alemanha, e um conflito sangrento e frequentemente descrito como “inútil” com o
regime soviético. No leste há também um fator étnico: o número de habitantes
russos é muito grande, o que mexe com os brios dos movimentos nacionalistas. E
é bom lembrar que na Europa, ao contrário da América Latina, nacionalismo é
sempre coisa de direita.
Se
este é o pano de fundo , deve-se levar em conta o que acontece nos bastidores e
também no palco da política ucraniana. Nos bastidores pairam as sombras dos
grupos econômicos – assim como na Rússia liderados pelos chamados “oligarcas” –
que se formaram depois do desmanche da ex-União Soviética, dos processos de
privatização de tudo, feitos a toque de caixa, e da independência. Estes grupos
de oligarquias é que dão as cartas – o poder do dinheiro – para os que estão no
palco, os políticos e seus partidos.
Entretanto
na Ucrânia não houve, pelo menos até o momento, um Vladimir Putin que, na
Rússia, digamos, “botou a casa em ordem”, oferecendo aos oligarcas a manutenção
de suas fortunas recém feitas (sobretudo durante o governo de Boris Yeltsin)
desde que não se metessem em política. Enfiando os principais desobedientes na
cadeia ou mandando-os para o exílio – confortável, na verdade – Putin e seu
neoczarismo disfarçado de república impuseram uma espécie de “pax romana” em
seu território. Na Ucrânia não houve este Putin, mas uma guerra de grupos ora
antangônicos, ora aliados, pelas benesses dos oligarcas e pelos espaços de
poder, o que conduziu todos a uma política onde alianças ocasionais são apenas
passos para uma ideal tomada total do poder, no melhor estilo do “para mim e os
meus tudo, para os demais os rigores da lei”. Este foi o conflito que se
estabeleceu entre o atualmente já ex-presidente
Viktor Yanukovitch e sua maior rival, Yulia Tymoschenko, que já fora
primeira-ministra por duas vezes, líder do partido chamado de União de Toda a
Ucrânia – Pátria Mãe, diríamos em português, embora em ucraniano seja “Pátria
Pai”.
Yanukovitch,
chegando à presidência em 2010, ensaiou e pôs em prática uma reforma
consitucional para aumentar a concentração de poderes em torno da presidência,
alijando os demais partidos – inclusive o do Tymoschenko – até mesmo das suas
franjas. E através de denúncias de corrupção e de um julgamento carregado de
suspeitas botou Yulia na cadeia. Aqui pode-se ter uma ideia das complicações da
política ucraniana. Yanukovitch é visto em geral como próximo da Rússia e
Tymoschenko como aliada da União Europeia. Pois o primeiro processo aberto
contra ela acusava a ex-primeira ministra de abuso de poder e super-faturamento
no contrato de fornecimento de gás para Gazprom, a principal empresa russa do
setor e uma das maiores do mundo que, como a Petrobrás, reúne capitais privados
mas tem seu controle acionário e de fundos nas mãos do Estado.
Entrementes,
o pró-Rússia Yanukovitch se aproximava da União Europeia e aprestava-se a
assinar um acordo de livre-comercio com ela. Nesta altura, Moscou acendeu a luz
vermelha. Para se entender isto precisamos sair do teatro da política ucraniana
e olhar o terreno em volta onde ele está localizado. Três grandes jogadores
estão assentados neste terreno, como os bispos de um jogo de xadrez, mais um
cavalo que joga com dois deles, contra o terceiro. Os jogadores são a Rússia, a
União Europeia e os Estados Unidos, e o cavalo é a OTAN, a aliança militar que
teve como principal inimiga a antiga União Soviética e que agora, além de
policiar o norte da África e áreas
próximas, continua, nem que seja por força do hábito, a cercar seu
adversário histórico, atraindo para si
os ex-satélites deste.
Os
interesses dos Estados Unidos e da UE não são coincidentes na região, pois na
atual conjuntura interna de Washington não interessa atiçar o confronto – a não
ser na retórica – com a Rússia, devido às necessidades de acertos na Síria, no
Irã, etc. Já a UE tem interesse em desembarcar seus avatares dentro do teatro
ucraniano, ampliando sua área de influência econômica, seu mercado e suas
‘reformas de austeridade’.
Outro fator que complica este movimento é o temor
histórico dos EUA de que, mesmo com rivalidades marcantes, a proximidade entre
Alemanha e Rússia termine por forjar uma
aliança estável e poderosa que desenvolva
um outro núcleo regional de poder. Na base de um movimento destes estaria
novamente o gás russo, de que a Alemanha já depende e vai depender mais quando
– e se – cumprir a promessa de desativar suas usinas nucleares.
De
um modo ou de outro, o fato é que a Rússia colocou um sinal de “Pare!” nos
movimentos de Yanukovitch: prometeu 15 bilhões de euros em empréstimos quase a
fundo perdido – coisa que a UE, às voltas com suas próprias quebradeiras, não
tem condições de oferecer à quebrada Ucrânia – baixou ainda mais o preço do gás
e pôs à disposição um acordo de livre-comércio consigo mesma, mais outros
países da região, ex-repúblicas, como a Ucrânia, da antiga URSS. Yanukovitch,
que já estava com a caneta na mão e embarcando para Bruxelas, tampou aquela e
desceu do avião. Junto aos projetos de novos capitalistas e da classe média do
oeste ucraniano (onde o desemprego também é grande entre os jovens), que já
sentiam o doce odor dos euros ao alcance da mão, este recuo foi a gota d’água.
Voltando
ao cenário político, a gôta d’água acabou se transformando num mar de sangue. É
verdade que as manifestações foram reprimidas duramente pela polícia. Mas
rapidamente sua linha de frente e também seu espaço foram ocupados por
movimentos de extrema-direita, nacionalistas xenófobos, antirrussos,
anti-direitos humanos, anti-imigrantes, antissemitas, anti-etc., tradicionais
na Ucrânia. São grupos de combate, armados, que fizeram frente a uma polícia
que progressivamente foi se tornando caótica e desorganizada. Estes grupos são
ligados, mas não necessariamente subordinados, ao Partido Svoboda, de extrema-direita,
que tem representação no Parlamento. Na última semana os confrontos chegaram ao
paroxismo.
Na
frente de negociação assentaram-se à mesa três ministros de Relações da União
Europeia (Alemanha, França e Polônia), Yanukovitch, três partidos de oposição e
mais um representante da Rússia. Enquanto isto, na praça em frente, o conflito
de agudizou, com armas de fogo de parte a parte, e franco-atiradores que
provavelmente eram de ambos os lados, embora a polícia tivesse ainda maior
poder de fogo. O resultado foi de centenas de feridos e muitas dezenas de
mortos; as cifras destes últimos variavam entre cerca de 50 a mais de 70, com
pelo menos 11 policiais. A certa altura o noticiário chegou a informar que 70
policiais tinham sido “sequestrados” pelos “manifestantes”.
Coloquei
“manifestantes” agora, logo acima, entre aspas, porque houve um movimento
constante por parte da mídia do Ocidente de idealizar o que ocorria na praça
principal de Kiev, apresentando os acontecimentos como um confronto desproporcional
entre a brutal repressão do governo e os “amantes da liberdade”.
Apesar
desta cortina de fumaça, logo começaram a vazar as informações de que estes
últimos eram na maioria e na verdadeira verdadeiras gangues neo-fascistas que
não aceitavam nenhuma negociação nem nada , a não ser a queda de Yanukokovitch
e o afastamento da arqui-inimiga Rússia.
Na
mesa de negociação chegou-se a um acordo, envolvendo um recuo nas reformas
constitucionais promovidas pelo presidente, eleições em dezembro deste ano e a
formação de um governo provisório de coalizão. Mas na praça a força policial
vinha recuando cada vez mais diante dos “manifestantes”, a tal ponto que estes
ampliaram os espaço sob seu controle, chegando inclusive a tomar as entradas do
palácio presidencial. Sentindo-se sem condições de segurança, Yanukovitch
deixou a capital em direção ao nordeste do país.
Seguiu-se
nesta altura um verdadeiro golpe de estado no novo estilo “legalizado” corrente
em várias ocasiões neste século XXI (Honduras, Paraguai, Grécia, Itália...): o
Parlamento declarou que Yanukovitch “abandonara o cargo” e destituiu-o da
presidência, com vários ex-membros de seu partido bandeando-se para o lado da
oposição, antecipando as eleições para maio e libertando Tymoschenko, que já
declarou-se candidata.
Que
acontecerá no futuro? É uma boa pergunta. Antes de conjeturar, um parêntese: e
as Forças Armadas da Ucrânia? Trata-se mesmo de um parêntese. Depois da
independência em relação à ex-União Soviética, as FFAA abriram mão do arsenal
nuclear que estava acantonado em seu território, passando-o à nova Rússia
emergente, e diminuiram seu contingente de quase 800 mil para pouco mais de 300
mil homens. Estão entre a cruz e a caldeirinha, realizando manobras tanto com a
Rússia quanto com a OTAN, que já se declarou de braços abertos para receber
este novo aliado quando ele quiser aderir. O namoro está no ar, e só não se
concretizou por causa da vigilância do chá-de-pera Rússia. Até o momento, pelo
menos, as FFAA ucranianas parecem estar olhando para o lado – pois nem mesmo a
segurança do presidente foram capazes de garantir.
A
este caldo complicado junta-se a ameaça do país rachar em dois (pelo menos): a
Criméia já manifestou desejos de se separar do restante do país e pedir sua
reintegração à Rússia. E no oeste também há manifestações de separatismo e
aproximação com a UE, à revelia das outras regiões.
O que vai acontecer vai depender das mensagens que estarão neste momento sendo trocadas entre Moscou, Washington, Bruxelas, Berlim, Paris e em menor grau outras capitais europeias, como Londres e Varsóvia. Qual será o novo arranjo entre os partidos políticos ucranianos? É uma boa pergunta. Tymoschenko vai mesmo recuperar seu antigo espaço na oposição que liderava, hoje ocupado por Vitali Klitschko, do Partido Democrático Aliança pela Reforma? O Svoboda vai aumentar seu poder de fogo? O que fará Yanukovitch? Os movimentos de trabalhadores, sobretudo no leste, ainda se mantinham a seu favor, embora no momento, com seu enfraquecimento, isto não tenha significado muito no tabuleiro enxadrístico ucraniano. E o que farão os grupos neofascistas que mantém Kiev sob seu controle?
O que estes farão ainda não se sabe. Mas já se sabe o que estão fazendo. No domingo pela manhã (23), enquanto eu redigia estas notas, corria a notícia – em tom discreto, ao lado da retumbância triunfal dada ao discurso de Yulia Tymoschenko na praça da Independência – de que a Embaixada de Israel na Ucrânia emitira um comunicado pedindo que todos os judeus se abstivessem de sair às ruas de Kiev ou até mesmo deixassem a capital, se pudessem, diante dos ataques contra eles que vem se sucedendo e intensificando nas ruas, com espancamentos, perseguições e outras coisas deste tipo.
Como
em velhos mas nada bons tempos, brinca-se com fogo por aqui.